Torres Vedras

Sérgio Simões

01.04.2019

Num ano em que se comemora as quatro décadas de elevação de Torres Vedras a cidade, a [Torres Vedras] foi falar com Sérgio Simões, autor da respetiva proposta, quando exercia funções de deputado na Assembleia da República. Esse foi o ponto de partida para uma conversa em que se abordou a evolução de Torres Vedras ao longo dos seus 40 anos de cidade, o seu futuro, bem como outros assuntos como os tempos “românticos” do 25 de abril, o papel do poder local democrático na construção de um país novo e o percurso político de Sérgio Simões que aproveitou para parabenizar os torrienses pela construção, na sua opinião, de uma cidade portuguesa de “top”…

 

 

Como foi o processo de elaboração da proposta de elevação de Torres Vedras a cidade? Quais foram as motivações que estiveram na base dessa iniciativa?

As motivações estavam, e ainda estão hoje, à vista de toda a gente. Isto é, Torres Vedras era uma grande vila, uma das principais do país, tinha uma potencialidade económica enorme. Aliás, era considerada na altura o celeiro de Lisboa – produzia batata, trigo, vinho, etc – e, portanto, não havia razão nenhuma para não ser cidade. No fundo, eu tinha os instrumentos necessários para isso. Era deputado, era membro da direção do grupo parlamentar do Partido Socialista e tinha o Código Administrativo ao meu lado que permitia ao Parlamento elevar vilas a cidades. E assim fiz o projeto de lei, que foi assinado pelos meus colegas do grupo parlamentar e entrou na mesa da Assembleia. Foi aprovado em plenário no dia 11 de janeiro de 1979 e publicado em 3 de fevereiro do mesmo ano. Em termos gerais, foi formalizar aquilo que já existia na prática. Torres Vedras já era cidade. Se existiam cidades mais pequeninas, com menor poder económico, porque Torres Vedras não o seria? Até porque na altura havia certas ajudas, certos equipamentos, que só estavam ao alcance das cidades. Hoje não é assim, mas temos de recuar a um contexto de há 40 anos, que era totalmente diferente.

 

Nessa altura os critérios de elevação de uma vila a cidade não estavam tão definidos como estão hoje…

Não, não estavam definidos. Eram muito vagos, muito genéricos. Neste projeto de lei a comissão de poder local exigiu, e bem, que a proposta fosse bem fundamentada. E eu fui buscar dados estatísticos a todo o lado e mais algum, sobre tudo e mais alguma coisa, como consumos de eletricidade, indústrias, mínimos de população residente e ambulatória, serviços públicos existentes, rendimentos económicos, acessibilidades, etc. Tudo isso teve de ser fundamentado, o que, aliás, é público e está publicado, e acabou por servir de base, mais tarde, três ou quatro anos mais tarde, para a primeira lei-quadro de criação de vilas e cidades, com aqueles critérios que no fundo foram bebidos do projeto de lei de elevação de Torres Vedras a cidade. Então começou a ver-se a possibilidade de elevar as vilas a cidades, e foi uma catadupa delas na Assembleia da República logo a seguir, o que obrigou a que se tivesse de pensar numa lei-quadro.

 

Como tem visto a evolução de Torres Vedras como cidade de há quarenta anos para cá? Com um contexto diferente, certamente, a indústria já não tem o mesmo peso que teve, é uma cidade muito mais de serviços…

Torres Vedras há quarenta anos, em termos industriais, contava com duas ou três grandes indústrias e depois havia umas pequenas indústrias familiares. Era a Casa Hipólito, a Francisco António da Silva, se quisermos a indústria Xavier Damião, e depois havia pequenas unidades familiares. Tinha também já um peso grande de serviços, mas era uma cidade normal, tinha as características próprias de uma cidade. Hoje, e vem evoluindo ao longo dos tempos, Torres Vedras é uma das principais cidades do país, em termos económicos, sociais e mesmo de turismo. Está no “top”. Os rankings que nós conhecemos colocam Torres Vedras sempre no “top 25” em qualquer variável ou parâmetro que queiramos analisar. Houve uma evolução muito grande. Se me perguntarem se Torres Vedras não tivesse passado a cidade, essa evolução verificar-se-ia? Nunca saberemos, é provável que sim, mas não saberemos, o que nos interessa é que hoje Torres Vedras é de facto uma referência nacional em variadíssimos parâmetros e isso é que é importante. Contudo, é importante realçar que, muito embora, estejamos a falar formalmente da Cidade de Torres Vedras, no meu subconsciente, na altura e agora, esteve sempre todo o território do nosso Concelho. De facto, as pessoas e os pequenos agentes económicos da zona rural do nosso Concelho tiveram, têm e terão sempre um papel determinante no desenvolvimento da sua Cidade.

 

Como vê o futuro da Cidade? Acha que há algum risco de passar a ser um local periférico de Lisboa, acha que vai sempre ter uma identidade própria?

Não vejo que corra esse risco embora estejamos a meia hora de Lisboa e os chamados “velhos do Restelo”, quando foi da abertura da A8, já apontavam esses riscos. Há instrumentos que limitam, condicionam, que uma localidade se torne um dormitório como aconteceu em tempos em Santo António dos Cavaleiros, por exemplo, e outras zonas periféricas de Lisboa. E isso está na mão dos autarcas, essencialmente dos autarcas, com os planos diretores municipais, os planos de urbanização e a atratividade que consigam para que haja também investimento no território, como aliás tem havido ultimamente. Cada vez mais, Torres Vedras é apetecível para investimento produtivo, que é o que nos interessa, e menos para expansão habitacional. Porque se analisarmos bem, a população da Cidade e zonas periféricas não tem aumentado para além do desejável. Tem mantido alguma estabilidade de há anos a esta parte, e a A8 que já existe também há muitos anos, não trouxe de facto aquela expansão habitacional que alguns temiam porque conseguiu-se evitar que isso aconteça e vai evitar-se no futuro.

 

Há pouco falávamos do processo de elevação de Torres Vedras a cidade, em 79, portanto, 5 anos depois do 25 de abril. Teve uma participação política e cívica importante na altura da “Revolução dos Cravos”. Fale-me um pouco desses tempos que hoje olhamos com algum romantismo…

Fui um dos fundadores do Partido Socialista em Torres Vedras juntamente com mais 25 pessoas. Éramos um grupo grande. Eram tempos românticos, que hoje recordamos com saudade. As noites sem dormir, os problemas do chamado PREC em que se montou quase um dormitório na sede do PS, enfim, estava quase tudo em “pé de guerra”. Havia muito trabalho, íamos às aldeias fazer sessões de esclarecimento e nalguns sítios éramos recebidos quase como extraterrestres. As pessoas fechavam-se em casa, espreitavam pela janela. O isolamento era quase total, as pessoas viviam e trabalhavam no campo e, portanto, acabavam por ter receio dos forasteiros. Isto durou muito tempo. Ou irmos a uma sessão de esclarecimento a uma aldeia próxima e quando começou a sessão os homens estavam todos sentados de um lado, as mulheres todas de outro, não havia mistura de homens e mulheres. Episódios que, enfim, vão ficando nas memórias…

 

Como vê todo o trabalho que o Poder Autárquico fez de há 45 anos para cá?

Teve um papel mais que fundamental. Sem os autarcas e as comissões de moradores muito mais faltaria para se cumprir os objetivos do 25 de abril.  Não havia água, a não ser aqui na Cidade, em Santa Cruz e pouco mais. Não havia eletricidade, as estradas eram em terra batida, tirando as vias nacionais e não havia dinheiro porque a lei das finanças locais não existia (só foi aprovada em 1977) e a maior parte das coisas eram feitas com os contributos da população. No pós-25 de abril as pessoas pediam uma estrada, um caminho e a Câmara, sem dinheiro, dizia-lhes: “ok, são precisos “x” bidons de alcatrão, custa “y”. Se arranjarem o dinheiro, vamos lá fazer isso”. As pessoas juntavam-se, arranjavam o dinheiro e a Câmara ia fazer o trabalho. Era tudo com contributos das populações. Os autarcas das freguesias eram os primeiros a dar o exemplo nos trabalhos de fim de semana, sacrificando o seu tempo de lazer e familiar. Não havia as condições que hoje há, e em termos financeiros não havia mesmo nada.

 

Hoje vivemos felizmente num contexto diferente. Podemos também dizer que as infraestruturas básicas estão praticamente concluídas. Que desafios antevê para as autarquias no futuro?

Quanto a mim, as autarquias cada vez mais vão tornar-se prestadoras de serviços. Mesmo uma entidade como, por exemplo, os Serviços Municipalizados têm hoje as obras como uma atividade mínima e a Câmara a mesma coisa. Há uns anos limitava-se a estender alcatrão nas estradas, a passar a licença dos cães, as licenças de publicidade e as licenças de obras. Hoje isso é uma parte mínima da atividade da Câmara. No âmbito da cultura, da intervenção social, da própria habitação, da saúde, da educação, a Câmara tem uma intervenção que não tinha há uns anos atrás, substituindo-se muitas vezes à administração central, e cada vez há de ter mais e hão de surgir outros desafios para as autarquias. A descentralização é um deles, mas há de vir a regionalização. Cada vez mais há um intercâmbio cultural e económico, internacionais até, e isso acaba por trazer outro tipo de exigências que não existiam. O próprio cidadão, que há relativamente pouco tempo, ficava satisfeitíssimo se alcatroassem a sua rua, hoje isso não chega, é muito pouco. Além de alcatroar as pessoas têm de ter os passeios como deve ser, têm que ter as valas das águas pluviais, têm que ter protetores para as crianças poderem ir pelo passeio, têm que ter eventos culturais, etc, etc, etc. As pessoas, e bem, cada vez são mais exigentes e conscientes dos seus direitos, anseiam e exigem mais instrumentos para poderem ter melhor qualidade de vida. Essa é uma missão das autarquias.

 

Retomando a abordagem ao seu percurso político, foi também vereador na Câmara Municipal com o pelouro das finanças e da área administrativa. Foi ainda chefe de gabinete dos presidentes Jacinto Leandro e Carlos Miguel, para além de presidente da Assembleia Municipal. Atualmente desempenha funções de assessor do presidente da Câmara Municipal para assuntos relacionados com a água. Que balanço pode fazer deste seu percurso?

O balanço é sempre positivo. Há coisas boas, há coisas más. Temos dias bons, temos dias maus. Temos dias em que ficamos felizes por ver que colocamos um sorriso no rosto de uma pessoa, mas também temos outros dias maus porque por vezes também erramos e também há incompreensões. Mas o balanço é sempre positivo e se não o fosse já teria ido embora há muito tempo. Desde 2013 que sou assessor do presidente da Câmara para a área das águas sem ter qualquer remuneração. Isso só é possível quando se gosta do que se faz e se ama a sua terra. É uma forma de voluntariado como outra qualquer. Também positivo porque, independentemente das divergências político-partidárias, respeito e tenho sido respeitado pelos meus adversários, fazendo excelentes amizades em todos os quadrantes. Isso é reconfortante.

 

Poderá apontar valores, ideais, que tenham norteado a sua atuação cívica e política?

Eu sou um socialista, e os valores do socialismo democrático, no fundo, são os valores humanistas, de defesa dos direitos humanos e da paz, defesa dos direitos, liberdades e garantias dos cidadãos, do combate à desigualdade e discriminação com base no nascimento, género, raça, orientação sexual e religião, da defesa de uma economia de bem-estar, da defesa do ambiente, enfim, de intervenção social, do desejo de que a justiça social se faça, de que a equidade social se faça, de que as diferenças entre ricos e pobres se vão esbatendo, não à força, mas pelo facto das pessoas mais desfavorecidas melhorarem o seu nível de vida e não o contrário. São valores que já veem da I República e são valores humanos. Eu diria, sem ofensa para ninguém, que um católico, segundo as teses de Jesus Cristo e da Bíblia, inevitavelmente será um socialista democrático.

 

Profissionalmente, foi bancário. De que forma essa sua atividade profissional contribuiu, se contribuiu, para a sua atividade política?

Por via da minha profissão também me dediquei ao sindicalismo, que é uma forma de intervenção social e de tentativa de melhoria das condições de trabalho dos colegas. Mas já antes de ser bancário tinha alguma intervenção política ou tentativa de intervenção política.

 

O início da sua atividade política remonta à sua frequência escolar…

Iniciou-se, no fundo, com um protesto, quando prenderam uma pessoa aqui de Torres e então foi decidido fazer uma manifestação. Na altura tinha 15 anos ou coisa assim do género e o setor estudantil tinha de se organizar. Então, foi na adega do meu avô, que lá nos juntámos, lá conspirámos, a preparar a manifestação. No dia da manifestação lá aparecemos alguns, pouquinhos, ali em baixo em frente à câmara, reivindicando a libertação do preso político e agitando uma bandeira nacional e umas tarjas. Também me lembro de participar em jantares do 5 de outubro com o meu tio Miguel…  Enfim, uma atividade levezinha, como não poderia deixar de ser…  Mais tarde, já bancário, também me recordo de umas reuniões clandestinas em casa do Duarte Nuno e na subsequente distribuição de panfletos, a qual acabou com a prisão do Pedro Fernandes.

 

Só depois entrou na área do sindicalismo e passou a ter uma atividade mais intensa…

Sim, mais intensa, mais pública, mais interventiva, que durou até 1989, até ir para vereador da Câmara. Só deixei o sindicato dos bancários para ser vereador…

 

Para terminar, perguntava-lhe se queria deixar aos munícipes, alguma mensagem, algum repto?

O repto que eu faço é apenas formal, porque no fundo e em termos práticos foram os cidadãos torrienses que fizeram esta cidade. Fizeram uma grande vila e depois construíram uma grande cidade. Os autarcas, do meu ponto de vista, são apenas orientadores e coordenadores daquilo que são os anseios dos cidadãos. Os autarcas têm o papel de cimento aglutinador das vontades de todos os agentes do conjunto do território. E, portanto, o futuro de Torres Vedras está nas mãos dos cidadãos torrienses e o repto que lanço é que continuem como têm estado até agora, porque têm estado muito bem…

Última atualização: 16.12.2019 - 15:37 horas
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