Torres Vedras

João Francisco

20.05.2021

Desenho a grafite

"Foi um processo mágico de abrir e fechar caixas e armários." Foi em 2012 que João Francisco reinventou parte das reservas do Museu Municipal Leonel Trindade para uma mostra que viria a estar patente na Paços - Galeria Municipal de Torres Vedras. Licenciado em Artes Plásticas – Pintura pela Faculdade de Belas Artes da Universidade de Lisboa e vencedor do Prémio de Pintura D. Fernando II em 2019, o artista fala sobre o seu "encontro" com a arte e sobre o processo criativo em torno da exposição Objetos Encontrados - a partir das reservas do Museu Municipal Leonel Trindade.

 

Quem é João Francisco? Como foi o seu encontro com a pintura?

Nasci em Torres Vedras em 1984. O encontro com a pintura, ou com a expressão artística em geral, surge cedo, ao longo da infância, nas atividades desenvolvidas quer na creche e na escola primária, quer em casa. Sempre tive uma grande apetência pelos trabalhos manuais e a sorte de ter professores ao longo do meu percurso escolar que promoveram e incentivaram essa busca e descoberta, que passou pela pintura e pelo desenho, mas também pela manipulação e experimentação de outros materiais e técnicas. Acho que a "criação artística" mais antiga de que me lembro fazer foi um conjunto de pequenos cenários, em cartão e papel pintado, à frente dos quais os meus brinquedos representavam. Tudo isto em cima de um tabuleiro de xadrez: o palco. Foi fácil a opção pela área artística na passagem para o ensino secundário e durante esse período afirmou-se a vontade de continuar pelo caminho das artes plásticas.

 

É na pintura ou nos desenhos a grafite que mais se encontra?

Acho que me encontro em todos os trabalhos, independentemente da técnica usada, de forma igual. Não demoro menos tempo a fazer um desenho que uma pintura. Não encaro o desenho como algo menor, ou como um estudo, uma preparação para algo mais importante. Na verdade, o método de trabalho para construir uma imagem é o mesmo: os objetos são dispostos no ateliê, encenados, e a imagem é construída a partir daí, seja ela uma tela pintada a óleo, um desenho a grafite, uma folha ou uma colagem depois pintada com acrílico. A escolha do material ou suporte a usar pode ter vários motivos, mais ou menos ocasionais ou práticos, mas não minto se disser que qualquer dos meus desenhos podia ser uma pintura e que qualquer das pinturas poderia ser um desenho.

A exposição Objetos Encontrados - a partir das reservas do Museu Municipal Leonel Trindade esteve patente na Paços — Galeria Municipal de Torres Vedras em 2012. Fale-nos um pouco sobre o processo criativo dessa série de trabalhos.

A exposição Objetos Encontrados foi um desafio grande a vários níveis. Por um lado, sair do conforto do ateliê e ir trabalhar para um outro espaço com condições, horários, características, "modelos" bem diferentes. Por outro, a questão do curto espaço temporal que tive para fazer a exposição: pouco mais de um mês. A ideia da exposição partiu dessa possibilidade de usar os objetos do acervo do Museu como material de trabalho: manipulá-los, encená-los, fazê-los comunicar e dialogar, que é a minha forma habitual de trabalhar. Pareceu-me logo à partida fascinante poder usar objetos de origens e universos tão diversos, que iam desde artefactos pré-históricos, objetos religiosos, utensílios industriais e artes decorativas até uma vasta coleção de brinquedos que ainda lá se encontrava encaixotada.

Foi um processo mágico abrir e fechar caixas e armários, escolhendo e levando para o ateliê improvisado os objetos que se impunham e que suscitavam ideias para imagens. Imagens essas que só existem por causa desta exposição: sem estes objetos específicos elas nunca teriam surgido. O desenho Um jardim italiano dentro de uma casa só existe por causa da fantástica maquete de uma adega que lá estava armazenada e da coleção de pequenas árvores e arbustos que encontrei nas dezenas de caixas que guardavam a coleção de brinquedos. O jogo de escalas, a ideia absurda de ter um jardim dentro de uma casa, tudo é fruto do acaso de tais objetos por lá se encontrarem.

A isto acresce o meu gosto e fascínio por museus, coleções, arqueologia. O sentido de responsabilidade ao manusear objetos frágeis, alguns com milhares de anos, foi qualquer coisa de simultaneamente mágico e assustador!

 

Desde aí, continua a recolher e a colecionar objetos e a usá-los como modelos nas suas composições?

Sim, o método de trabalho continua a ser semelhante. Gosto do confronto, do desafio que a presença de um modelo real representa, seja ele um objeto simples sozinho ou uma amálgama mais ou menos disforme e estranha de muitos objetos em massa. A possibilidade de alterar este modelo, de adicionar ou remover coisas, de alterar a iluminação e por consequência o que está em luz ou em sombra, torna esta forma de trabalhar num processo vivo e nada estático — algo que seria, a meu ver, difícil se trabalhasse a partir de fotografias, por exemplo.

Escreveu na altura que “uma natureza-morta pode ser simultaneamente um retrato ou uma paisagem”. As flores são neste momento figuras muito presentes nas suas naturezas-mortas atuais. Pode partilhar connosco o que anda a produzir nos últimos tempos?

Sim, continuo a subscrever essa afirmação e esse jogo entre os géneros clássicos da pintura permanece um dos temas e caminhos do que vou fazendo. As flores têm realmente tomado um papel presente nos últimos tempos — correspondem a uma outra atividade a que cada vez mais dedico tempo e atenção: às plantas, à natureza, ao jardim. Tenho a sorte de viver no campo, com um jardim para cuidar, e nesse contacto diário tornou-se natural a vinda de "objetos encontrados" no jardim para o ateliê. Trazem consigo outros desafios, como a exigência da rapidez na sua representação, mas no limite são apenas mais um objeto, como qualquer um dos outros encontrado na rua, comprado na Feira da Ladra ou recolhido à beira-mar.

As peças que tenho produzido ultimamente seguem ainda um tema explorado na última exposição individual e que tem como origem as chamadas tapeçarias mille-fleurs, produzidas na Europa central entre o século XV e XVI. São imagens que, mantendo essa referência histórica, tentam aludir a temas contemporâneos e ao mesmo tempo jogar com noções de repetição, saturação e decorativismo. E que, no fundo, sendo naturezas mortas, são também jardins ou paisagens.

Última atualização: 20.05.2021 - 11:37 horas
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