Alfredo Reis
02.01.2023
O seu percurso de vida e a história mais recente do Carnaval de Torres Vedras estão profundamente ligados. Entre 1987 e 2006, foi Rainha do Carnaval, desde 2020 é chanceler da Real Confraria e o ano passado foi eleito presidente da Comissão Consultiva das Comemorações do Centenário do Carnaval. Nesta edição, a Revista Municipal [Torres Vedras] esteve à conversa com Alfredo Reis.
É realmente inegável a sua ligação ao Carnaval, mas começava por lhe pedir que nos falasse um bocadinho sobre o seu percurso de vida.
Eu sou torriense, nascido em Torres. Nasci mesmo em Torres, porque na altura em que eu nasci quase toda a gente ia nascer a Lisboa, mas eu nasci mesmo em Torres. Fiquei torriense a 100%. Tenho 61 anos, vou fazer 62 agora. Vivi sempre cá, à exceção do período em que estive a estudar. Estive em Lisboa e formei-me em engenharia civil. Posteriormente, também estive dois períodos fora, nos Açores, em termos profissionais, mas tirando isso sempre vivi em Torres e sou um torriense de gema. [...]
Muitas pessoas conhecem-no por Mima. Como é que surgiu essa alcunha?
É uma alcunha muito simples de explicar. Somos três irmãos, eu sou o mais novo, bastante mais novo, e os meus irmãos tratavam-me pelo “menino”. E eu quando comecei a falar comecei a dizer que eu era o “menino” e o “menino” a mim saía-me Mima, naquelas primeiras palavras que a pessoa diz. Acharam muita graça e foram-me tratando por Mima. Eu não me importei. É uma marca que fica para toda a minha vida, nunca me preocupei em corrigir isso. É até um bocado uma marca distintiva, até porque “Alfredos” há muitos e Mima é um exclusivo.
Como é que o Carnaval entra na sua vida?
Eu sou de uma família de foliões e vivi sempre no centro de Torres, sempre no meio do Carnaval. Tenho uma fotografia minha mascarado no primeiro Carnaval que eu passei. Nasci em maio e o primeiro Carnaval foi em fevereiro do ano seguinte, portanto ainda não tinha um ano e já estava mascarado. [...] Faziam-se cocotes na minha casa e até o meu avô, porque era proprietário de uma empresa de vinhos, fazia um carro de Carnaval. [...] Havia uma tia
minha que tinha uma varanda em cima do corso, onde centenas pessoas passavam lá para comer e beber e entravam e saíam. Os próprios Reis do Carnaval iam lá também. Havia a tradição, e houve durante muito tempo, dos Reis do Carnaval visitarem casas de famílias que viviam dentro do corso. Já nessa altura era assim. Eu lembro-me de em miúdo ficar completamente embevecido com a presença dos Reis. [...] Eu não me comecei a envolver no Carnaval, eu já estava no Carnaval.
Eu não me comecei a envolver no Carnaval, eu já estava no Carnaval.
E daí até ser Rainha. Como é que surge o convite?
Eu sempre me mascarei, como digo comecei muito novo a mascarar-me de matrafona. Comecei a andar pelas coletividades para além do corso. Entretanto, o meu irmão, um bom bocado mais velho do que eu, foi convidado para Rainha, porque ele fazia parte dos Ministros & Matrafonas.
[...] O meu irmão esteve só três ou quatro anos e depois quis deixar, porque isto é tudo muito bonito mas ser Rei do Carnaval é altamente cansativo. [...] Eles tentaram convencer o meu irmão até à última. Faltava uma semana para o Carnaval de 87 e eu estava em casa, ainda estava a estudar nessa altura, estava em casa em Lisboa. O João Maria telefonou-me e disse: “Olha, tu lembras-te daquela conversa que nós tivemos?” Eu: “Não.” “Pois, mas tivemos e tu disseste que se o teu irmão deixasse para falar contigo.
Nós estamos aqui atrapalhados e tu tens mesmo que ser este ano.” [...] Eu não tinha fato sequer naquela altura, fato feito de propósito, tive que ir ao Paiva, que era o guarda-roupa do Parque Mayer. Fui ao Paiva, a quatro ou cinco dias do Carnaval, escolher o meu vestido. Trouxe um vestido que parecia a Nossa Senhora de Fátima, todo branco. Era o que havia. [...] No ano seguinte: “Eh pá, tens que ir buscar o fato ao Paiva.” [...]
E assim passaram 20 anos...
E com isto passaram 20 anos. Aquilo que eu dizia que era um ano, foram 20 anos de reinado.
Desse longo período em que foi Rainha, o que o marcou mais?
Eu posso dizer que eu não seria o mesmo se não tivesse este percurso, porque isto molda as pessoas. Até mesmo o facto da própria população me reconhecer por isso. De maneira que isso teve influência, obviamente em toda a minha vida a partir daí.
Eu posso dizer que eu não seria o mesmo se não tivesse este percurso, porque isto molda as pessoas.
Depois em 2005 está também envolvido na fundação da Real Confraria do Carnaval de Torres. O que é que vos levou a criar a associação?
A Real Confraria é formada pelos elementos das comissões de Carnaval antigas que ainda estavam no ativo, porque o Carnaval até determinada altura foi organizado pela Comissão de Carnaval, que eram pessoas que tinham as suas profissões e eram uns carolas que tratavam daquilo. Eu nos últimos anos também fiz parte da Comissão de Carnaval. E nessa altura, chegou-se à conclusão que era impossível não haver uma equipa profissional a tratar da organização do Carnaval. Não havia tempo para as pessoas que trabalhavam também terem esta tarefa. Foi quando se municipalizou, digamos, a organização do Carnaval, primeiro com a Câmara Municipal e, posteriormente, com a Promotorres. E nessa altura estes membros das comissões, que eram pessoas que todas elas estavam muito ligadas ao Carnaval e que sabiam muito de Carnaval, no fundo, eram as pessoas que serviam um bocado de suporte a quem profissionalmente estava a organizar o Carnaval. E entendeu-se que tinha que haver uma entidade que gerisse a questão das tradições. [...]
Em 2020 foi eleito chanceler da Real Confraria. Como é que encarou esse papel?
[...] Eu fiz parte da cúria régia, a direção, digamos. Fiz parte durante uns anos, mas depois fui viver para os Açores uns anos e deixei de fazer parte. E nessa altura esteve o engenheiro Miranda como chanceler. [...] O engenheiro Miranda aqui há uns anos, 2018/2019, teve uns problemas de saúde e aquilo estava ser um fardo um bocado pesado. E nessa altura algumas pessoas juntaram-se e convidaram-me para fazer, no fundo, uma substituição. [...] Atendendo às circunstâncias aceitei e criei a minha equipa e foi a partir daí que propusemos eleições e fomos eleitos.
Isto foi em novembro de 2020, ou seja, já estávamos em plena pandemia...
Dois anos de pandemia, dois anos sem Carnaval. Portanto, ao fim de quase três anos é agora que vou fazer o meu primeiro Carnaval, o meu primeiro ano com o chanceler efetivo, digamos assim. [...]
A somar a esse cargo de chanceler assumiu, no ano passado, o de presidente da Comissão Consultiva das Comemorações do Centenário do Carnaval de Torres Vedras, que se assinala em 2023. Em que que consiste esta Comissão?
A Câmara Municipal criou três comissões. A Comissão de Honra, que é o que é, pessoas que mereceram a honra de ser convidadas para essa comissão. E depois duas comissões: a Executiva, que é quem põe em prática aquilo que entretanto for decidido fazer; e a Comissão Consultiva que, tal como o nome indica, é uma comissão que à partida seria chamada só para dar as suas opiniões sobre o que se estava a fazer. Mas como dentro da Comissão Consultiva há muita gente muito ligada ao Carnaval e com muitas ideias sobre o que é o Carnaval, sobre os eventos que poderiam fazer parte de umas comemorações do Centenário, nós propusemo-nos a também fazer parte da execução do programa. A maior parte das propostas que vão aparecer no programa emanam da Comissão Consultiva. [...]
Alguma coisa que nos possa adiantar?
Se calhar não devia, mas posso dizer. [...] É preciso recordar que é o Centenário do Carnaval organizado da forma que nós conhecemos, onde aparece o primeiro Rei. É o Centenário, no fundo, do aparecimento do primeiro Rei, porque já havia registos de Carnaval anteriores, até muito anteriores, alguns que eu nem sei be
m qual é a data, mas estamos a falar do século XVI. E sendo o Centenário, como eu dizia do aparecimento do primeiro Rei, faz todo o sentido reunir o mais possível todos os reis que entretanto passaram pelo trono. Isso está garantido e todos aceitaram que todos os reis e rainhas vivos vão ter uma participação ativa neste Carnaval, nomeadamente logo na Chegada dos Reis. [...]
Quer dizer que também vai voltar a vestir o seu fato de Rainha...
Pois, vou voltar a vestir o meu vestido de Rainha, que já não visto há 15 anos.
Nos últimos anos acabou por acompanhar de perto o Carnaval. O que é que mudou ao longo destes anos na sua perspetiva?
O Carnaval vivia essencialmente do dia, dos corsos de domingo e de terça, e das coletividades à noite. [...] Eu lembro-me de passar nas ruas em Torres sem ninguém, não havia viva alma. Eram ruas vazias, as pessoas estavam todas nas suas coletividades e não havia ninguém. [...] No fundo cresceu a noite em prejuízo das coletividades, com grupos de mascarados que começaram a sair. [...] A noite está cada vez maior, não sei se ainda é possível crescer mais. A verdade é que todos os anos acho que está sempre em crescimento. Curiosamente, isto houve uma altura que coincidiu com uma decadência um bocadinho invisível do dia, dos corsos. Mas isso foi ultrapassado. Esta ideia dos grupos de mascarados, de grandes grupos de mascarados, e de incentivá-los a fazerem o concurso de grupos de mascarados, ao sábado à noite e depois participarem nos corsos de domingo e de terça, trouxe um novo impulso aos corsos diurnos. E, hoje em dia, eu posso dizer que está mais ou menos equiparado o entusiasmo do dia e da noite. [...]
Como é que se concilia esse crescimento do Carnaval com a salvaguarda das tradições?
Compete a todos, mas muito à Real Confraria ter isso em conta. Quando nós falamos das tradições, isto é tudo evolutivo, há coisas que nunca mais voltam e outras vão aparecendo e nós também não podemos desprezar. Há que fazer um bocado a filtragem do que interessa e tentar manter também do que vinha de trás o que interessa. Se for assim, a tendência será para que o Carnaval seja vez melhor. Mas isso é uma das tarefas complicadas que temos, não há dúvida nenhuma. Mas quando digo “temos” digo todos, comunidade carnavalesca. Não estou só a referir-me à Real Confraria, que tem as suas responsabilidades nisso, mas isto é válido para todos, todos
temos que estar atentos.
E nos próximos anos, como é que perspetiva o Carnaval de Torres Vedras?
Essa é a pergunta mais difícil, eu não sou futurologista. Eu diria mais: “O que é que eu espero?” Eu espero que isto se mantenha com o espírito que tem de há 100 anos para cá. O espírito do bom folião, de divertimento, das pessoas se respeitarem umas às outras, de saírem, de beberem um copo - não faz mal nenhum -, de se divertirem, de se meterem umas com as outras saudavelmente. [...]
Quando: 13 de janeiro de 2023
Onde: Centro de Artes e Criatividade de Torres Vedras
Texto: Filipa Sérgio
Fotografia: Afonso Mira