D. Manuel Clemente
01.07.2021
Um torriense convicto. “Sou o sócio n.º 30 do Torreense e tenho as quotas em dia”, afirma com orgulho. É assim D. Manuel Clemente. Inspirado pelo exemplo do saudoso padre Joaquim Maria de Sousa, decidiu, já depois de ter cursado História, enveredar pela vida religiosa, sendo há oito anos cardeal-patriarca de Lisboa, depois de ter desempenhado as funções de bispo do Porto durante “sete Páscoas”. A [Torres Vedras] esteve à conversa com D. Manuel Clemente, numa entrevista em que o mesmo abordou o seu percurso de vida, a atualidade da Igreja, a tradição vocacional religiosa católica de Torres Vedras e o futuro. Aliás, para D. Manuel Clemente “o futuro não existe”, mas é antes “algo que se cria em cada momento, é um campo completamente aberto àquilo que nós quisermos que ele seja”. E, na sua opinião, estão reunidas todas as condições para que o futuro de Torres Vedras seja risonho…
Começava por lhe pedir para fazer um balanço da sua missão como patriarca de Lisboa…
Aqui, na diocese, temos andado em volta de um tema que o Papa Francisco nos deu em 2013, precisamente o ano em que comecei a desempenhar as funções de patriarca de Lisboa. Nesse ano ele lançou o programa para o Pontificado que é “A Alegria do Evangelho”, o qual vai no sentido de converter as nossas comunidades cristãs missionariamente. Ou seja, que elas vivam cada vez mais atentas ao meio envolvente, que tudo aquilo que fazem dentro de portas seja para fora, para chegar a toda a gente. E deu essa indicação para o mundo em geral, portanto, para todas as dioceses, para que levassem isso por diante. Que vissem como podiam desenvolver uma reflexão e uma ação que fosse no sentido da expansão missionária das comunidades cristãs. Porque o Papa está convencido, como eu próprio estou convencido, naturalmente, que o Evangelho que nós recebemos e celebramos nas comunidades importa para as pessoas em geral, para dar mais significado às suas vidas, em torno da figura de Jesus Cristo, que é tudo aquilo que a Igreja tem para si e para oferecer. Então, nós lançámos o chamado Sínodo Diocesano de Lisboa. Teve uma série de etapas de preparação, em toda a diocese - a qual começa em Lisboa e vai até Alcobaça e estende-se de Azambuja até ao mar -, envolvendo as suas 285 paróquias, mais os institutos religiosos, os movimentos, os grupos, quem se quisesse associar. Durante cinco trimestres refletiu-se sobre os cinco capítulos desse texto do Papa Francisco: A Alegria do Evangelho. Depois, houve um momento, que até aconteceu no concelho de Torres, mais concretamente na nossa casa de retiros do Turcifal, que foi uma assembleia onde confluíram todas as reflexões que foram feitas e da qual saiu um documento, que é a constituição sinodal de Lisboa, um documento que nos últimos quatro anos temos vindo a aplicar. E em junho, no Turcifal, há uma assembleia conclusiva e avaliadora deste percurso. Por isso, como balanço, estou à espera daquilo que vou ouvir, como conclusão deste percurso que demorou sete anos, que começámos em janeiro de 2014 e estendeu-se até agora, 2021, no sentido de que as nossas comunidades cristãs, a rede de paróquias da diocese, avalie que ações fizeram, que novas maneiras encontraram, para que o Evangelho que nós transportamos, a pessoa de Jesus Cristo, o seu significado, chegue a mais pessoas como proposta de vida, que é para isso que a Igreja existe.
Recuando um pouco no seu percurso, perguntava-lhe como foi a sua experiência à frente da diocese do Porto? Foi uma experiência positiva?
Para mim muito positiva, no meio de uma belíssima gente, daquele povo, que é o povo da diocese do Porto - diocese que geograficamente vai do mar até à Serra do Marão e começa naquela zona de Antuã e vai até ao rio Ave. Uma diocese também grande, com zonas também distintas, mais subdividida em paróquias do que acontece no centro e no sul do país, com muito dinamismo, muitas instituições, muitos movimentos, uma parte socio-caritativa também muito desenvolvida. E foram anos muito bons, celebrei lá sete Páscoas, e cada uma delas com muita vida, porque são comunidades muito ativas. Aquelas pessoas do Norte são muito treinadas a puxar por elas, não estão à espera de indicações de fora para andar para a frente, isto tanto no campo da Igreja, como no campo social e no campo económico. É um povo muito ativo, participante, e com um contacto muito fácil, muito direto, muito terra a terra. Foram anos muito preenchidos.
Recuando ainda mais no tempo, perguntava-lhe como foi o seu chamamento para a vida religiosa? Houve pessoas, momentos em particular, que o tenham levado a tomar essa opção de vida?
Isso tem tudo a ver com a nossa terra, com Torres Vedras. Eu nasci em 1948, faço parte daquela geração que nasce a seguir à segunda guerra mundial e que chega à juventude nos anos 60. Uma geração muito interessante porque, no fundo, nascemos num mundo que já era muito diferente em termos de pensamento, em termos de perspetivas, relativamente ao mundo anterior à segunda guerra mundial, a qual veio pôr em causa muita coisa, como todos nós sabemos. Torres Vedras não era a terra que é hoje em tamanho, era uma terra onde nós facilmente nos conhecíamos. E se por um lado tinha em casa a influência da minha mãe, uma pessoa muito religiosa, na catequese e na igreja tinha a influência do padre Joaquim Maria de Sousa, que era alguém muito envolvido na vida da terra, sempre muito interessado naquilo que fosse o progresso de Torres Vedras. A figura do padre Joaquim acabou por me tocar fortemente. E lembro-me perfeitamente do momento em que pela primeira vez comecei a pensar em seguir a vida religiosa. Eu ajudava na missa e, ao entrar para a sacristia, olhei para o padre Joaquim Maria de Sousa, e pensei que queria um dia ser como ele. Devia ter sete, oito anos. É interessante, como estas coisas depois marcam. Quando acabei o liceu não entrei logo para o seminário porque em casa os meus pais eram da opinião que primeiro devia tirar um curso, que não fosse o de Teologia. Acabei, de facto, por entrar para o seminário, já bem crescidinho, mas primeiro tive de cursar História.
E como foi o seu percurso sacerdotal até ter assumido as funções de bispo do Porto?
Fui ordenado em 79 e, no ano seguinte, fui coadjutor de Torres Vedras e de Runa, no tempo do cónego Horácio Correia. No fim desse ano trouxeram-me para o seminário dos Olivais, onde fui formador durante 25 anos - primeiro como prefeito, depois como vice-reitor e por fim como reitor. Entretanto, já estava formado em História, liguei-a à Teologia, e fiz um doutoramento em Teologia Histórica, e assim fui professor de História da Igreja na Universidade Católica, quer aqui em Lisboa, quer mesmo no Porto, durante muitos anos, até 2013. Para além disso fui assistente de muitos movimentos, grupos, entre outras incumbências que me foram dando pelo caminho, até ter sido chamado para o episcopado em 99, tendo até 2007 desempenhado as funções de bispo auxiliar de Lisboa.
Como já disse, cursou História antes de ter feito o curso de Teologia, tendo continuado a realizar diversos estudos na área da História depois da sua ordenação…
Sim, a História liga-se muito ao meu próprio percurso religioso. Porque as minhas investigações andaram sempre muito à volta do que é o catolicismo em Portugal no seu sentido mais profundo. Perguntava-me muito, ainda antes de cursar Teologia, quando era aluno de História na Faculdade de Letras de Lisboa, como é que apesar de todos os solavancos da História o catolicismo persistia em Portugal. E por isso toda a minha investigação foi no sentido de estudar os veios profundos do catolicismo português, os movimentos, os grupos, a presença muito forte do laicado, as redes familiares, que são no fundo os suportes da vivência católica, que por vezes é muito atacada na sua organização, mas que permanece nesses veios mais profundos. Isto a que se chama em termos de historiografia atual Movimento Católico. E os meus estudos de História são quase todos sobre isso.
Virando um pouco a página nesta entrevista, perguntava-lhe como vê o atual momento da Igreja, num mundo em mudança tão rápida? Que principais desafios enfrenta a Igreja na atualidade?
Eu creio que a resposta chama-se Papa Francisco. A eleição do Papa Francisco foi realmente uma novidade na vida da Igreja. Desde o início da Idade Média até à eleição do Papa Francisco o Cristianismo é sobretudo de matriz europeia, os bispos de Roma, os sucessores de Pedro, são sobretudo europeus, e a eleição do Papa Francisco traz-nos um Papa que, como ele próprio disse, vem do fim do mundo. Isso significou que o centro da vida católica passou a ficar muito marcado por aquilo que é o dinamismo da Igreja Católica sul-americana. Portanto, aquilo que dizia a propósito do Sínodo de Lisboa, da conversão missionária das comunidades, para além de outros aspetos, como a atenção às periferias da sociedade, a prioridade aos pobres, são acentuações que já existiam, mas às quais o Papa Francisco vem dar outro dinamismo.
Simultaneamente o catolicismo tem-se desenvolvido não tanto na Europa, mas sobretudo em algumas regiões da Ásia, como é o caso da Coreia e do Vietname, na América Latina e também em África. Assim, podemos dizer que o catolicismo está a mudar de feição, o catolicismo está de facto mais católico, porque católico quer dizer universal.
E como vê o envolvimento dos cristãos atualmente na vida política e social?
O seu envolvimento tem sido muito evidente para quem tem acompanhado este período da pandemia, da resposta à pandemia, da resistência anímica à pandemia. É evidente a presença dos católicos e das católicas em tudo o que é sítio. Os testemunhos são constantes, no sistema de saúde, na vida hospitalar, nas organizações - não apenas nas católicas convencionais, como as cáritas, os centros paroquiais e sociais, os lares -, nas realidades sociais em geral. E aí é que os católicos se afirmam com aquilo que a convicção evangélica também lhes dá, de acordo e em colaboração com homens e mulheres de boa vontade que, graças a Deus, também não faltam por este mundo. Aliás, em todo o lado encontro gente mais ou menos motivada em termos evangélicos, testemunhos muito belos que reconheço e agradeço. Estes tempos de pandemia, a todos os níveis - a nível familiar, a nível autárquico, ao nível do sistema de saúde, da Segurança Social, ao nível das variadíssimas iniciativas institucionais ou espontâneas -, têm mostrado da parte da sociedade portuguesa uma capacidade de agir, interagir, de andar para a frente, de responder, notável.
Voltando a olhar para Torres Vedras, perguntava-lhe como explica o fenómeno do grande número de vocações religiosas que se têm gerado no território do Concelho ao longo dos tempos?
Eu creio que isso tem a ver com o que se passou em relação a mim, com o contacto cativante e marcante com párocos exemplares como o padre Joaquim Maria de Sousa. Também tem a ver com a rede familiar. Torres Vedras, mesmo nos tempos conturbados dos séculos XIX e XX, sempre contou com uma série de veios familiares fortíssimos que asseguraram a transmissão da Fé. E isso não aconteceu apenas comigo. Houve, portanto, uma tradição familiar católica nas várias freguesias do concelho de Torres que é a explicação das vocações, que não nascem sem ser devido a um lastro familiar, paroquial e comunitário.
Olhando para o futuro, vê-o de uma forma positiva, com otimismo?
Vejo. Um exemplo foi a reação da sociedade portuguesa e não só ao que a pandemia trouxe. Porque o futuro não existe, o futuro é algo que se cria em cada momento, é um campo completamente aberto àquilo que nós quisermos que ele seja. Ele não está à nossa espera, nós é que o podemos antecipar pela maneira como estamos nas coisas e as levamos por diante.
A terminar a entrevista, perguntava-lhe se gostaria de deixar alguma mensagem aos seus conterrâneos, aos torrienses?
Sim, com todo o gosto. Nós temos todas as condições como torrienses para criar não só em Torres Vedras, mas também para todos aqueles que venham à nossa terra e por todos aqueles que são da nossa terra e vão para outras terras, um bom futuro. Somos um povo muito provado e comprovado em termos de resiliência e capacidade de criar.
Local: Casa Patriarcal
Data: 16 de abril