Agenda
Edgar Pêra. Uma Retrospetiva
Exposição Documental
Até 4 de março 2017
Evento já ocorrido
Local: Paços - Galeria Municipal de Torres Vedras
"A exposição documental patente na Paços - Galeria Municipal de Torres Vedras Galeria Municipal, que acompanha a retrospetiva de Edgar Pêra no Teatro-Cine de Torres Vedras, reúne pela primeira vez um conjunto diversificado de materiais representativos da pluralidade de práticas, suportes, meios e linguagens em que se tem desdobrado a sua obra. Manifestos, textos críticos, colaborações com a imprensa, experiências gráficas desenvolvidas no cruzamento da banda desenhada, com o vídeo e a fotonovela, cadernos e outros documentos configuram um universo singular e dão conta da peculiaridade dos interesses e métodos de trabalho do autor. Além de evidenciar e contextualizar o estatuto de cineasta independente que, ao longo dos últimos trinta anos, tem feito de Pêra o mentor emblemático do underground cinematográfico português, a exposição revela sobretudo facetas menos conhecidas da sua atividade que abrem perspetivas de leitura inéditas sobre a sua produção fílmica.
Ativo desde meados da década de 1980, Edgar Pêra (Lisboa, 1960) pertence à geração de artistas que, na senda das vanguardas do início do século XX, reclama a urgência de reinventar uma nova modernidade em Portugal. Sobre as cinzas da revolução de
1974 e face ao opressivo isolamento do País, como se vê nas páginas de A Invasão (1989), as simbólicas ruínas do incêndio do Chiado oferecem ao cineasta o cenário apocalíptico para Os Sobreviventes (projeto de 1989, inacabado) ou para o seu primeiro filme de ficção, Reproduta Interdita (1990), estabelecendo o espaço urbano como paisagem privilegiada
do seu cinema. Num e noutro casos, trata-se de demolir ironicamente o saudosismo pátrio, fazendo tábua rasa de condicionalismos históricos para pensar o presente Portugal à luz de futuros alternativos ou de lógicas temporais que, como em Manual de Evasão LX94 (1994), desafiam a ideologia do progresso e os consensos burocrático-administrativos.
Entre invasão e evasão, o cineasta coloca em crise estereótipos sociais, fantasmas do passado e valores de uma classe média recente — emancipada, veraneante e, como se vê na banda gráfica A Cadeira (1991), frequentadora das ocidentais praias lusitanas —, refletindo, no mesmo gesto, acerca das múltiplas transposições formais e disciplinares que
sustentam o seu trabalho.
Trata-se de explorar a saturação cromática, a textura visual e outros recursos técnicos próprios do vídeo, de tirar partido da tensão plástica entre figuração e abstração, questões que se prolongam nas experiências vídeo-fotográficas publicadas pelo autor na imprensa. Aí se reduzem a um mesmo plano imagens do horror — como se vê em Timor videorealista (1991) ou em Matadouro Capítulo 13b: Maio Vermelho em Sarajevo (1992) — e imagens puramente estéticas, cujo único referente é o meio televisivo — como se verifica na
série de “vídeo-abstrações” de 1989 que antecipa o 3D. Trata-se, portanto, de pensar politicamente a televisão como instrumento de nivelação (e esvaziamento) capaz de despojar a realidade de si própria. A esta reflexão, que se estende à necessidade de reequacionar as potencialidades do cinema numa nova ordem de realidade “audiovisionista” e que tem como pontos altos os “Manifestos Neuropunks” (1989-90), não é certamente
alheia a produção crítica de Edgar Pêra, publicada no semanário O Independente e na revista K, onde tenta aferir o impacto do vídeo sobre o cinema, relegado ao consumo doméstico na era da industrialização das imagens, com particular ênfase na inventividade dos filmes de série B e restantes subprodutos da cultura de massas.
O inventário da modernidade é conduzido por Edgar Pêra numa ambivalência problemática, contrapondo à alienação produtiva das sociedades contemporâneas uma reflexão sobre as possibilidades de criação coletiva (de que a Akademya Lusoh-Galaktika é o melhor exemplo), o questionamento da autoria e do mercado de valores que lhe está associado, bem como do papel do cinema na constituição de uma memória crítica atuante. É neste âmbito
que surge a figura do Homem-Kâmara, alter-ego do cineasta-arquivista que regista a emergência da cena rock em Portugal, as primeiras edições da Moda Lisboa e as contradições das tribos urbanas, sobretudo nos horários fora-de-expediente da vida
noturna lisboeta. Nos extensíssimos Arkivos Ciné-Rock é possível encontrar não apenas os primeiros ensaios de bandas como os Heróis do Mar ou os Rádio Macau e entrevistas com os GNR do tempo das Dunas (cujo videoclipe é, aliás, o filme inaugural de Pêra) mas também as coleções de Ana Salazar de inícios dos anos 1990 (como acontece no filme Não
há flores!, do verão de 1993); ou seja, encontramos o trabalho de outros artistas que, como Edgar Pêra, defendem a necessidade de subverter e modernizar a língua (veja-se o caso do “Português Sohnicu”), além de cruzes de Cristo, esferas armilares e toda a simbólica das narrativas da identidade nacional.
O retrato de um país em mutação é, no cinema de Edgar Pêra, povoado por mutantes. Assim se compreende que, entre a interrogação da “superioridade moral dos super-heróis” da americana Marvel, o reconhecimento de que “Lenine está vivo nos nossos comics” e a imagem das grandes figuras da nação, as fronteiras se esbatam a ponto de os tempos de antena do Bloco de Esquerda realizados por Pêra recuperarem ironicamente os códigos da BD. Isso mesmo explica também que a campanha encomendada pelo movimento Política XXI para as eleições para o Parlamento Europeu de 1994 esteja, em termos formais, na origem de um filme como O Barão (2011), onde a figura do sanguinário ditador continua a assombrar, como uma alma penada, os dias de hoje. Eis alguns dos paradoxos que, sem contradições nem incoerências, fazem do cinema de Edgar Pêra um observatório privilegiado dos dilemas do nosso tempo, pondo a nu o pacto secreto que une e confunde ficção e
realidade."
António Preto
Inauguração: 21 de janeiro, às 17h00
Atividade Gratuita