Torres Vedras

Francisco Bastos

01.05.2013

Francisco Bastos

Francisco Bastos é um médico e uma personalidade bem conhecida dos torrienses. Durante décadas em que a assistência ao nível da saúde no concelho era muito mais parca de recursos, este médico fez um trabalho importantíssimo nessa área, calcorreando as aldeias ou recebendo pacientes no seu consultório, para além de ter trabalhado no hospital de Torres Vedras e no Sanatório do Barro. "Agora que a festa está quase a acabar", como ele afirma, concedeu uma entrevista à [Torres Vedras] onde abordou o seu percurso profissional e pessoal, a evolução da medicina e da saúde particularmente no concelho, o desenvolvimento deste e a homenagem que lhe foi prestada no último Feriado Municipal. Honestidade é para Francisco Bastos um valor essencial para construir um mundo melhor...

É médico há 62 anos. Como despertou em si o interesse para essa profissão?

Tomei essa decisão quando estava no 7.º ano da escola secundária, aqui em Torres. Nessa altura gostava muito de ciências e achava que a medicina se prestava a isso e como médico teria uma boa maneira de ganhar a vida. Uma carreira científica diferente como Física ou Química seria mais problemático do ponto de vista económico.

Está contente com a sua opção?

Correu bem, portanto, foi certa. Sempre me senti livre nas minhas opções, com uma certa liberdade de ação, obviamente sempre com responsabilidade também. Preparei-me para médico rural, digamos assim. Comecei por fazer o internato nos hospitais, o que na minha altura não era obrigatório. Um interno não ganhava nada de especial, era com se estivesse a fazer um estágio e fazia o trabalho normal de um médico. Na altura até era difícil arranjar emprego num hospital, só abriam 30 vagas por ano, aí para uns 100 concorrentes. Depois do internato geral fiz um ano de cirurgia e mais um de obstetrícia. De modo que fiquei com uma preparação geral muito grande, embora a minha especialidade seja pneumologia.

Como foram as suas muitas décadas de trabalho como médico? É muito diferente ser médico hoje em comparação com há sessenta anos atrás?

Sempre lidei com todo o tipo de pessoas. Aqui há 50/60 anos não havia postos na periferia, extensões do centro de saúde. O pessoal rural vinha à cidade para ter cuidados médicos ou então eram os médicos que se deslocavam às aldeias. Nas últimas décadas os atos médicos domiciliários caíram em desuso, agora é uma parte mínima do meu trabalho. Aqui há 60 anos um cidadão quando adoecia não ia ao hospital normalmente, chamava o médico a casa e se o médico dissesse que tinha de ser hospitalizado é que o paciente ia ao hospital, e só quando estava muito aflito. Hoje o doente recorre logo ao hospital, à exceção dos doentes de 3.ª idade que não estejam dispostos a sair de casa. Até quando um miúdo adoecia com febre o médico era chamado a casa.
E antigamente o pessoal rural não dava tanta importância às doenças da velhice. Hoje estão preocupados se têm o colesterol alto, se têm a tensão alta... Antes, principalmente a população rural, só ia ao médico quando estava doente a valer, não andava à procura de doença. Não havia a medicina preventiva que existe hoje. Os postos clínicos estão cheios de gente que anda a fazer medicina preventiva, análises, exames, e antigamente isso era muito raro. Até porque antigamente nem se tinha praticamente acesso às análises. Não havia o hábito de fazer análises de rotina e hoje quase toda a gente faz anualmente um exame geral. Lembro-me que nesses tempos muita gente para ir a Lisboa fazer um exame ou ir a uma consulta tinha de levar um atestado de pobreza passado pela Câmara. A previdência só começou a existir no pós-guerra e só para certos setores como o comércio e a indústria, o pessoal rural estava fora desse sistema. As casas do povo eram uma coisa rara. Iam ao médico mas tinha que ser por conta deles. Se bem que existia o esquema dos médicos municipais, do início do século XX, os quais eram pagos pelos municípios com obrigação de ir às freguesias dar consultas e dar assistência a uma lista de pobres indicada pelas juntas de freguesia. Esse esquema durou até há 40 anos. Em Torres havia três.

E as consultas domiciliárias, como eram?

Bom, por vezes estava a dar consulta e tinha que sair para essas consultas domiciliárias de urgência. Às vezes até ao serão, de madrugada, quando atendia chamadas de urgência. Essas chamadas noturnas implicavam um certo desgaste. Durante a noite chegava a ter mais de uma chamada. Uma vez eram três da manhã e vinha do lado da Póvoa de Penafirme. Nessa altura não havia telemóveis e ali à Boavista estava um fulano a fazer sinal para parar. Eu parei e fui a uma chamada às Brejenjas. Telefonaram para a minha casa, a minha mulher disse-lhes que tinha ido para aqueles lados e eles foram para a estrada esperar que eu passasse. Em certas aldeias que tinham maus caminhos, no inverno, chegava a ter de deixar o carro e andar a pé boas distâncias para ir à casa dos pacientes.

Durante a noite chegava a ter mais de uma chamada

Chegou também a trabalhar no Hospital...

No hospital colaborava no serviço de urgência. Fazíamos uma escala mas era mais de prevenção, não estávamos lá fisicamente. O hospital tinha muito menos movimento, embora fosse sustentado pela Câmara. As pessoas recorriam-se mais dos médicos municipais e dos outros. Era tudo mais complicado. Para se tirar uma simples radiografia ao tórax tinha que se ir buscar uma guia à Câmara, que era a entidade responsável pela saúde pública. Quando uma pessoa aparecia nos hospitais civis mandavam depois uma conta para a Câmara. Ainda me lembro de no balcão do Hospital de S. José estar afixado um papel com as câmaras devedoras, e a maior parte eram as câmaras do Alentejo que eram as mais pobres. A primeira cesariana no hospital foi feita por mim. Só mais tarde apareceu o Dr. Noronha, com o qual colaborei. Na altura que deixei o hospital, já tínhamos mil e tal partos por ano e raramente transferíamos alguma grávida para Lisboa. No meu tempo, um médico fazia um dia por semana na urgência e não ganhava nada com isso. E agora há médicos que fazem duas ou três urgências por semana e ficam remediados.
Mas nunca trabalhei para o Serviço Nacional de Saúde. Quando começou a ser implementado a vida estava a correr-me bem e não me interessou. Tinha um dia preenchido, trabalhava 14h por dia. Chegaram a convidar-me, mas recusei. E agora são umas dezenas largas de médicos a trabalhar aqui nisso.

A primeira cesariana no hospital [de Torres Vedras] foi feita por mim

Na sua opinião a criação do Serviço Nacional de Saúde foi realmente importante?

Sem dúvida, foi um passo muito grande em frente, mesmo com todas as suas imperfeições. Havia muito pessoal que estava desguarnecido. E antes havia uma doença que matava muita gente, que era a tuberculose...

E trabalhou também no hospital do Barro...

Sim, trabalhei lá trinta e tal anos. O Sanatório abriu na altura em que comecei a exercer. Concorri como interno e fiz lá a minha carreira de pneumologista, que é a minha especialidade, embora tenha feito de tudo.

Como tem visto a evolução da medicina ao longo de todas as décadas em que exerceu a sua profissão?

Está mais acessível a toda a gente, sobretudo a partir da criação do Serviço Nacional de Saúde, toda a gente tem acesso à medicina moderna. Há mais documentação, há mais exames complementares, que ajudam a um diagnóstico mais preciso. Evoluiu bastante sobretudo na matéria do diagnóstico. Lembro-me, por exemplo, que o primeiro raio X apareceu em Torres em 38, instalado por um técnico alemão, no hospital antigo, da Misericórdia. E análises praticamente não havia, começaram muito mais tarde. Quem as quisesse fazer tinha que ir a Lisboa e eram muito rudimentares. Já a maior parte das terapêuticas, como os antibióticos, é tudo do pós-guerra, dos últimos 70 anos. E a evolução dessa área permitiu diminuir em muito a mortalidade, aumentando substancialmente a esperança de vida. Em Portugal houve grandes avanços na diminuição da mortalidade infantil, o que se deveu ao Serviço Nacional de Saúde e à melhoria económica. O pessoal rural tinha dificuldade em criar os bebes se não houvesse leite materno e as alimentações artificiais antes eram muito falíveis e incompletas.

Viveu a sua vida quase toda em Torres...

Sim, nasci em Lisboa, mas apenas por questões logísticas. Tirando os anos em que estive na universidade, estive sempre em Torres.
Lembro-me ainda dos tempos da segunda guerra, tinha 11 anos quando começou. Lembro-me de a meio da guerra ter começado a haver as senhas de racionamento para alimentos como o açúcar e o azeite. Havia falta de gasolina, houve dois anos em que praticamente ninguém andava de automóvel, tirando os transportes públicos.

Nesse tempo as estradas eram tão pouco usadas que eu e os meus amigos patinávamos de Torres até aos Casalinhos. Havia na altura algum hábito de patinagem em Torres. E foi nos anos 40 que foi feito o ringue da Física no espaço onde está hoje o edifício da Câmara. Em termos de equipamentos desportivos houve uma evolução muito positiva, tal como ao nível de outros equipamentos, como os culturais. Torres hoje é uma cidade agradável de viver, que está evoluída em qualidade e ambiente, e onde se sente uma certa segurança. As pessoas ainda se conhecem, ainda convivem, estão bem instaladas.

A Zona Verde acho que foi a melhor obra que se fez nos últimos tempos aqui, beneficiou muito a cidade e deu muita categoria à terra. As aldeias têm melhores acessos e os largos estão mais bem arranjados. Mas o saneamento é que foi a grande conquista, tal como a eletricidade. Lembro-me que na década de 40, durante a guerra, só havia eletricidade em Torres e em 43 fechava às 10 da noite, quando havia falta de combustível. Havia em Santa Cruz, no verão, e mais nada... As melhorias em termos de higiene pública foi também uma das grandes razões para a esperança de vida ter subido. A água ao domicílio para mim foi a maior conquista da civilização.

A água ao domicílio para mim foi a maior conquista da civilização

Torres Vedras tem neste momento uma grande oferta em termos de saúde...

Sim, sem dúvida, porque o acesso espalhou-se. Como disse anteriormente, a população em geral antes não fazia exames. Fazia uma vez ou duas na vida se fizesse e agora fazem-se sistematicamente por rotina.

Para além do contributo que deu à comunidade torriense em termos profissionais também o deu por meio da atividade política...

Sim, fui primeiramente membro da Assembleia Municipal e depois da vereação pelo PSD, nos anos 80. Na altura até fazíamos almoços semanais, dávamo-nos todos bem uns com os outros, havia civilidade. Fiz parte de uma comissão de obras que apreciava os loteamentos antes de irem a reunião de câmara. Nos assuntos sociais ajudava em obras de reparação de habitações e acompanhei também a construção do Bairro Social da Boavista-Olheiros e as respetivas candidaturas. Lembro-me até que se conseguiu na época um subsídio do Governo Civil para esquentadores para habituar os habitantes do bairro a tomar banho, o que foi uma medida pedagógica.

Teve algum envolvimento associativo?

Tive algum envolvimento, não muito, no Aeroclube de Santa Cruz, na Física e nos Bombeiros.

Dedicou-se a algum tipo de hobbies?

Quando era novo fiz voo à vela, gostava também muito de andar de kayak em Santa Cruz e fiz muitas viagens de barco à vela.

Do balanço da sua já longa vida, que valores gostaria de recomendar às gerações mais novas?

Honestidade... E que sejam todos cordiais uns com os outros.

Foi para si gratificante a homenagem que o Município lhe prestou na Sessão Solene do último Feriado Municipal?

Sim, sabe sempre bem, foi uma prova de cordialidade, uma pessoa gosta de ser considerada na sua terra...

Última atualização: 03.02.2017 - 09:37 horas
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