Torres Vedras

Vítor Sobreiro [Ninéu]

01.11.2015

Ninéu

Vítor Sobreiro, mais comumente conhecido por “Ninéu”, é uma figura sobejamente conhecida no concelho. Antigo futebolista do Torreense que se notabilizou no meio artístico pela sua participação no programa televisivo “A Visita da Cornélia”, esteve à conversa com a [Torres Vedras] numa entrevista que teve como ponto de partida a comemoração dos 50 anos da segunda subida da equipa sénior deste clube à primeira Divisão, da qual ele fez parte. Numa altura em que o Torreense está também prestes a assinalar o seu centenário, Vítor Sobreiro recordou as experiências vividas com esse emblema ao peito, os seus tempos de infância e juventude, bem como a sua vida profissional e artística. Na sua opinião, é importante as pessoas (re) aproximarem-se, recuperarem o espírito crítico e voltarem a sonhar...

Numa altura em que se assinala os 50 anos da segunda subida da equipa de futebol sénior do Torreense à primeira Divisão perguntava-lhe que memórias guarda dessa experiência?

Ainda tenho memórias muito frescas desses tempos. Lembro-me que as últimas jornadas foram disputadas taco a taco com o Peniche. E lembro-me que o último jogo, com o Montijo, em casa, que ganhamos por 4-1, tínhamos mesmo de ganhar. O estádio estava a abarrotar e no final do jogo houve invasão de campo. Tive de tirar a camisola para minha própria segurança, isto antes de ser passeado em ombros. Lembro-me que essa equipa era constituída basicamente por jogadores daqui, e por alguns outros de fora que foram ficando. Havia um espírito de amizade, de camaradagem, jogávamos por amor à camisola, e hoje o futebol já não é isto. Para nós o futebol era um momento de distração, não se pensava em dinheiro. Por exemplo, quando subimos à primeira Divisão, o prémio de jogo por uma vitória em casa era de 50 cêntimos, e a vitória fora de 200 escudos, o que equivale hoje a um euro. Lembro-me de termos ganho aqui ao Sporting por 3-0, o que foi algo de inesperado, histórico, e o prémio de jogo nessa ocasião foi de mil escudos, o que para nós foi uma coisa espetacular. Nessa altura, na primeira Divisão, já ganhávamos 750 escudos, o que era muito bom. Lembro-me também de ter marcado aqui um grande golo ao Porto, também nessa época em que estivemos na primeira Divisão, num jogo em que perdemos por 2-1.

dos principais problemas hoje em dia no futebol é a formação dos dirigentes

Nessa altura esteve quase a ser transferido para a Académica…

Pois, mas isso não chegou a acontecer. Quem acabou por jogar na Académica foi o Vítor Campos, que estava na equipa de juniores quando eu era sénior, e viria a ser inclusivamente internacional. Nessa altura era treinador da Académica o Mário Wilson, ele estava interessado em que fosse seu jogador, mas a direção do Torreense não me deixou ir, porque teria de ser transferido ao abrigo da lei dos estudos, e na altura ainda estava um pouco indeciso sobre o que havia de fazer. Entretanto decidi-me mais tarde a entrar para o curso de Educação Física, mas poucos meses depois fui mobilizado para a tropa…

Chegou a combater na Guerra do Ultramar?

Não. Como na tropa tive a terceira melhor classificação no curso e era um rapazinho bem comportado consegui ir, como atirador de infantaria, para a Força Aérea, mais concretamente para a Polícia Aérea. Fui um dos 20 escolhidos entre uns 800. Todos queriam ocupar essas vagas porque com isso conseguia-se não ir para a guerra ou pelo menos para a frente de combate. Na altura, por intermédio de um capitão, fui jogar para o Tramagal, onde subimos da terceira para a segunda Divisão. Voltei ao Torreense e acabei a minha carreira futebolística com 27 anos devido a uma lesão na coluna, porque recusei ser operado. Quando estava em Lisboa ainda andei uns anos a treinar sozinho nas matas do Estádio Nacional e a treinar aqui só à 5.ª e 6.ª feira, o que fez com que tivesse perdido velocidade e ganho resistência. Com isso comecei a jogar no meio-campo e a ser eu a mandar os outros correr (risos).

Começou por jogar a que posição?

Nos juniores era ponta de lança. E até não correu mal porque fiz 24 golos. Aliás, recuando um pouco, até lhe posso contar que comecei a jogar na escola de jogadores que foi criada pelo Américo Belen, um argentino que tinha vindo jogar para o Torreense na década anterior quando o clube esteve pela primeira vez na divisão principal. Nessa primeira subida o Torreense tinha algum dinheiro, vieram para Torres mais argentinos, até nos chamavam “os milionários do Oeste”. Essa escola de jogadores teve continuidade com o Evaristo Silva que criou aqui uma equipa de principiantes, numa altura em que a outra única categoria que havia nas camadas jovens de futebol era a de juniores. Ele fazia coisas muito interessantes. Levava-nos ao sábado à noite para a sede do Torreense, para lermos sobre táticas, e pagava-nos o bilhete para a segunda plateia na matiné de domingo no Teatro-Cine, depois de jogarmos de manhã.

Quando cheguei aos seniores, e nem tendo acabado os juniores, puseram-me a extremo-direito porque era um rapaz rápido, e na altura os extremos tinham de ser muito rápidos. Quando estávamos na época de subida à primeira Divisão o ponta-de-lança lesionou-se na primeira jornada e fui adaptado a essa posição. Ainda fiz 13 golos nessa época. Depois, voltei a jogar a extremo, e, mais tarde, como já disse, até a médio, porque com a idade vamos perdendo faculdades físicas e ganhando maturidade psicológica.

Recorda algumas peripécias desse tempo?

Tive imensas. Lembro-me, por exemplo, que quando estava nos principiantes, o nosso defesa-direito, o António Joaquim, um tipo encorpado do Penedo, estava a deixar o extremo passar por ele como "cão por vinha vindimada". Perguntamos-lhe o que se passava e ele explicou que naquele dia o pequeno-almoço, tomado às sete da manhã, tinha sido uma coisa nova na altura, chamada Toddy, um pó achocolatado para se pôr no leite, em vez de um bife com batatas fritas e um balde de tinto, que era o que tomava normalmente nos dias dos jogos àquela refeição (risos).

Lembro-me também de caloirar os que eram novos nos seniores e fazer-lhes a chamada "cama à espanhola".

Lembro-me ainda de jogar no estádio das Antas e os meus colegas, mais velhos e batidos, fazerem lançamentos sucessivos pelo lado direito, sendo eu extremo. Dou por mim exausto e olho para o relógio do estádio e ainda só tinham passado dez minutos (risos).

Eram outros tempos no futebol…

Sim, treinávamos às sete e meia, depois do trabalho, sendo que muitos tinham trabalhos físicos. Jantávamos lá para as dez e no outro dia tinha-se de ir trabalhar. O profissionalismo não existia aqui nesses tempos. Muitas vezes eram as direções que arranjavam empregos aos jogadores que queriam trazer para aqui, se bem que na altura os empregos eram mais estáveis e menos precários do que são agora. Eu acho que é um bocado indecoroso os dinheiros que giram hoje em dia à volta do futebol. Mas são os tempos atuais, vive-se numa sociedade em que só se pensa no dinheiro, no lucro, é uma sociedade controlada pelos meios de comunicação social, em que se promove o sucesso acima de tudo. Somos números e não pessoas. E nessa altura éramos pessoas. Hoje os futebolistas são mercadoria, muitas vezes até vão jogar para clubes onde nem têm vontade de ir.

E um dos principais problemas hoje em dia no futebol é a formação dos dirigentes, sendo que muitos não têm preparação o que leva a que assistemos a todas estas polémicas. Outro problema são as claques, que fazem com que as famílias se afastem dos espetáculos de futebol. Foi um problema que na Inglaterra conseguiram resolver mas em Portugal ainda não.

E relativamente à sua vida profissional?…

Em 71 acabei o curso no INEF, hoje FMH. O primeiro sítio onde dei aulas foi aqui em Torres, na altura ficávamos colocados onde queríamos. Mas como vivia em Lisboa, onde estive durante 20 anos, concorri para lá. Dei aulas durante 15 anos no Liceu Pedro Nunes, em Lisboa. Também nessa altura trabalhei na Direção Geral dos Desportos, criei até uma coisa chamada Movimento Nacional do Futebol Juvenil com o Artur Jorge, o Jesualdo Ferreira e outros. Até que a minha mulher teve um convite para trabalhar no grupo Valouro e voltei a Torres. Estive a dar aulas dois anos na Lourinhã e nessa altura estive ligado ao Desporto Escolar. Até que vim para a Escola S. Gonçalo, onde estive durante quatro anos, tendo depois concorrido para a Henriques Nogueira onde acabei a minha carreira profissional.

Ao longo desses anos, como foi vendo as mudanças no sistema de ensino?

Para pior, sempre. Os miúdos hoje estão mais indisciplinados, os pais têm uma atitude superprotetora em relação aos filhos, há também o problema da “reunite”, e dos professores que gostam muito de se ouvir. Por outro lado, ainda, o trabalho dos professores hoje é mais preencher papéis do que propriamente dar aulas e para mim a relação com os alunos era a grande riqueza da minha profissão…

E quando entra nas “artistices”?...

Bom, já na escola era um estudante irreverente e nas festas era o palhaço-mor. Entretanto, surgiu no final dos anos 70 um concurso que foi uma “pedrada no charco”, que não tem nada a ver com estes concursos de hoje que são modelos copiados do estrangeiro, que se chamava “A Visita da Cornélia”, em que se tinha de saber cantar, dançar, fazer uma série de coisas... Era um programa para pares, fui com a minha mulher, e na altura aquilo foi um êxito estrondoso, até porque só havia dois canais televisivos. O programa era transmitido à 2.ª feira em horário nobre e toda a gente o via. Lembro-me de estar em Lisboa no trânsito e as pessoas chegarem a reconhecer-me dentro do carro e a darem-me os parabéns. Mas na altura o 25 de abril ainda era bastante recente, as coisas ainda estavam efervescentes, e uns tipos de extrema-direita começaram a assobiar-nos nos espetáculos porque nos conotaram com a esquerda. Uns patetas, porque não tínhamos qualquer intuito político. Lembro-me até de sair do Teatro Sá da Bandeira com a ajuda de uns tipos que não conhecíamos e vir a saber mais tarde que eram da LUAR.

A seguir à experiência nesse programa uns miúdos aqui de Torres que gostaram de nos ver nesse programa pediram para lhes ensinar a dançar, quando a minha mulher era diretora cultural da Física. Mas nós dançávamos sem técnica porque éramos autodidatas. Então, com 40 e tal anos, fomos os dois aprender a dançar e daí nasceu a Escola de Dança da Tuna, que tem mais de 30 anos.

as pessoas estão quase sem sonhos

Eram tempos diferentes, acho que as pessoas hoje em dia vivem pouco para a comunidade, isolam-se. Os anos 70 foram anos em que as pessoas ainda acreditavam em coisas. Para além disso, tive ainda algumas experiências no cinema, tendo a mais importante sido a participação no filme de António Pedro Vasconcelos "Os gatos não têm vertigens", que foi na altura considerado o melhor filme do ano.

Acha que mataram os sonhos nas cabeças das pessoas?

Sem dúvida, hoje as pessoas estão quase sem sonhos. Os meios de comunicação social são controlados e as pessoas como que andam hipnotizadas por aquilo que eles lhes dão.

Exerceu também funções associativas…

Estou há muitos anos envolvido numa coisa que se chama Grupo dos Amigos de Torres. Para além do envolvimento na Tuna.

Somos números e não pessoas

A malta está a isolar-se, mas paradoxalmente, o concelho de Torres tem muito movimento associativo, embora perceba que muitas vezes as associações vivam de um ou dois “carolas” que arrastam os outros. O Novos Talentos, por exemplo, é um evento que teve o seu começo numa iniciativa nossa. O Rui Drummond, a Andreia Matias, o Hugo Rendas, o João Pedro, a Susana Félix, foram valores que eu e a minha mulher descobrimos na Física e na Tuna. E descobrimos também muitos valores nas aldeias porque demos aulas de dança em muitos locais. Acho que era importante formar animadores nas aldeias para que os equipamentos aí construídos tenham utilização.

Como tem visto a evolução de Torres ao longo dos anos?

Embora tenha vivido 20 anos em Lisboa, nunca estive afastado de Torres. Torres Vedras cresceu muito, e aqui foram feitas obras de grande relevo, como foi agora o caso do Choupal, que desde os meus 10 anos ouvia que devia ser intervencionado. Aliás, até me lembro de nós, Grupo dos Amigos de Torres, termos lançado a ideia de um concurso de ideias para o Choupal, que se realizou e deu um contributo importante para a obra que foi agora concretizada.

O Parque Verde da Várzea foi outra obra de grande importância, até porque foi realizada na época da “febre” da construção e não terem deixado fazer ali prédios foi uma grande vitória. É um espaço que está muito bem aproveitado e vê-se lá muita malta a fazer atividade.

A obra de requalificação de Santa Cruz também foi uma intervenção importante.

Hoje em dia todas as terras querem ser como Bilbau e ter o seu Guggenheim. Na minha opinião, temos no concelho dois "Guggenheims" que deviam ser aproveitados: as Linhas de Torres Vedras e o Castro do Zambujal.

E o Torreense? Como o vê atualmente? Acha que é possível voltar à primeira Divisão?

Eu acho que não tem condições, não há dinheiro. Mas sinceramente desliguei-me bastante do futebol, já não vou à bola, vejo o futebol só em casa.

Tem recordações de infância que gostasse de referir?

Nasci na Rua dos Cavaleiros da Espora Dourada. Não sei porque me colocaram a alcunha de “Ninéu” mas sempre me lembro de me tratarem por esse nome. Lembro-me de jogar à bola na rua e passar um carro de hora a hora. O pior era quando à 5.ª feira vinham os animais da Malveira para o matadouro que enchiam o chão de bosta (risos). Lembro-me também de jogar na Praça da Batata, junto à casa do senhor cardeal, e de partir-lhe um vidro ao marcar um grande golo ao ângulo, e de não ter tido coragem de ir lá pedir a bola (risos). Na altura Torres era uma terra pequena, conhecíamo-nos todos, até as pessoas das aldeias. Lembro-me de jogar à bola já com os homens na Várzea, que era no limite da vila. De muita gente andar para aí descalça, iam para a escola descalços, ou nuns calções com fundilhos. Até me lembro de termos comprado uns ténis para um colega nosso do Torreense e ele não se entender a jogar com eles porque só sabia jogar descalço (risos). Materialmente as coisas melhoraram muito, a outros níveis penso que não… Havia mais solidariedade, mais segurança, lembro-me da porta da minha casa nunca estar trancada, e de dar boleia a qualquer pessoa sem receio… Eram outros tempos…

Mas em todos os tempos fui e serei sempre um orgulhoso toriense!...

Última atualização: 07.01.2016 - 10:51 horas
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