Torres Vedras

João Paulo Barrinha

06.08.2020

Obra de João Paulo Barrinha que integra o acervo municipal. Vêm-se quatro imagens azuis com sombras pretas, divididas em quatro superfícies quadrangulares.

João Paulo Barrinha nasceu em Cantanhede, mas vive em Torres Vedras desde 1975. Hoje, o artista dá a conhecer uma obra da sua série Spectrum¸ que integra o acervo da Paços - Galeria Municipal de Torres Vedras.

 

Como é que a fotografia surgiu na sua vida?

Penso que houve inicialmente uma influência do meu pai, que era funcionário da saúde (técnico de raios X) e lidava com praticamente as mesmas técnicas e químicas que se usam na fotografia. Além disso, o meu pai também era fotógrafo amador, coisa que, naquele tempo, não era muito comum. Por causa disso, sempre convivemos com a fotografia e com filmes Super-8. Ainda tenho a câmara e o projetor Super-8 que ele comprou.

Tinha eu 18 anos quando comprei a minha primeira câmara fotográfica, em segunda mão, a meias com o meu irmão. Foi uma Pentax Spotmatic II. Um verdadeiro "trator", como lhe chamamos. Pesada e robusta q.b., mas muito fiável. Vimo-la à venda na montra do Foto Franco (um fotógrafo comercial torriense conhecido) e não descansámos enquanto não a comprámos. Nem eu nem o meu irmão sabíamos sequer trabalhar com essa máquina (nem com nenhuma, na verdade). Mas logo comprámos também um livro de técnicas fotográficas da Kodak e fomos experimentando, ainda em rolo de filme, coisa que não era barata. Mas foi amor à primeira vista, para mim e para ele. O meu irmão ainda a tem.

Ao início, eu nem pensava sequer em vir a ser fotógrafo, estava ainda muito entusiasmado com a eletrónica. E só alguns anos depois (aos 23 anos), é que surgiu uma hipótese de trabalhar para o jornal Em Frente Oeste, a fazer fotografia e escrever. E, assim, tornei-me jornalista e repórter fotográfico, profissão que ainda continuei em diversos órgãos de comunicação em Lisboa (mas já só como repórter fotográfico). Nessa época também fiz diversas formações que me fizeram evoluir muito, mas devido a crises financeiras crónicas tive de voltar ao modo amador. Tornei-me comerciante (não de fotografia), mas nunca deixei totalmente de fotografar e participar em projetos, sempre que podia. Até que, já depois dos 40 anos, resolvi voltar à fotografia. Fiz a licenciatura em fotografia (em Tomar) e, logo de seguida, nasceu o meu projeto "Walking Camera Project".

 

Em que consiste o projeto “Walking Camera Project”?

Este projeto surgiu a partir de uma memória minha e também de uma ideia antiga, mas nunca concretizada até agora. Relativamente à memória: lembro-me de ter visto um senhor na praia de Santa Cruz, com uma câmara à la minute. Aliás, penso que todas as pessoas da minha geração (e mais velhas) se lembram disso.

Quanto à ideia que me perseguia: ela tinha que ver com uma vontade de vir a fazer um projeto fotográfico na praia do Meco, com retratos de famílias de banhistas naturistas, com todos os preceitos do retrato à la minute, cavalinho incluído. Talvez um dia concretize essa ideia...

Mas tal como me aconteceu inicialmente com a fotografia, também eu não tinha intenção de tornar essa ideia num projeto de trabalho contínuo. Seria para fazer só uma temporada, acabaria por ali. Foi só quando estive a fazer a licenciatura (já tarde), que me apercebi de que o meu lugar na fotografia teria de ser através de um projeto próprio e de pouca concorrência. A minha idade não me aconselhava a entrar num mercado de trabalho onde exigem maioritariamente jovens...

[…] Foi assim que os astros se alinharam numa conjugação de fatores que me levou a regressar ao passado e às minhas memórias... E daí nasceu o "Walking Camera Project", um projeto de trabalho colaborativo que desenvolvo de modo itinerante, baseado essencialmente em processos artesanais e história da fotografia, com diversas atividades divididas em subprojectos, como workshops de vários tipos (em colaboração com diversas entidades). E, mais recentemente, incluí nesse corpo de trabalho os meus projetos mais pessoais, mesmo aqueles onde recorro a processos digitais ou em vídeo.

Das atividades que mais visibilidade dão a este meu projeto, destaco o subprojecto de fotografia à la minute como sendo aquele que lhe serviu de motor de arranque e que lhe dá corpo. Neste subprojecto, realizo um conjunto diversificado de atividades de retrato didático e performativo, com destaque para participações em eventos populares e festivais de artes de rua, conjunto esse de atividades que denominei pomposamente de "A Fabulosa Máquina de Fazer Parar o Tempo". Ainda dentro desse conjunto de atividades de retrato à la minute, estou a desenvolver vários projetos relacionados com a memória, sendo alguns mais intimistas e outros mais relativos à memória coletiva.

“Luz” e “sombra” foram as palavras-chave da exposição Spectrum, que esteve patente na Paços - Galeria Municipal de Torres Vedras em 2015. A obra doada à coleção do Município faz parte da série que deu nome à exposição. Podemos saber um pouco mais sobre esta obra?

Primeiramente temos que ver que luz e sombra fazem parte da génese de qualquer tipo de imagem de origem fotográfica. Sem luz e sombra, nenhuma forma pode ser registada por esse processo. Mas nessa metáfora acerca de luz e sombra, a mim interessa-me essencialmente referir a dicotomia entre o conceito de presença e de ausência. Para definir essa narrativa, joguei com dicotomias (mas que na verdade se completam como duas faces de uma mesma moeda) que estão igualmente presentes, de outras formas, em muitos dos meus projetos fotográficos mais pessoais. […]

Inicialmente, fiz essas imagens pelo puro prazer de as fazer. Recordo que estava num daqueles dias de tédio, fechado em casa, em Tomar (onde estava a estudar), sem nada de interessante que me apetecesse fazer. Mas de repente, uma luz muito bonita, de pôr-do-sol, começou a entrar por uma janela superior. Gosto muito da luz de fim de tarde, não tanto pelo facto de proporcionar imagens visualmente atraentes, mas, essencialmente, pelas metáforas poéticas que podemos trabalhar a partir dela.

Vivia num primeiro andar e a luz passava pelos ramos de uma árvore, que se agitavam ao vento e projetavam na parede sombras dinâmicas, como se fossem animadas. E, assim, coloquei-me no caminho entre os raios de luz e a parede, no intuito de obter imagens de sombra da minha figura, enquadradas de tal modo que poderiam ser retratos de sombra.

Depois, dessas fotografias que constam da obra que doei à Galeria (as caixas de luz), quis explorar também o movimento. Assim surgiu o vídeo que consta na mesma exposição, realizado num só take e sem cortes posteriores, onde fiz movimentos inteiramente improvisados e com a câmara parada. Foi um registo integral, puro e duro. Num certo sentido, ao bom estilo de Cartier Bresson, mas numa linguagem totalmente diferente da que usava esse autor.

Depois de fazer essas imagens - que fiz numa só tarde (vídeo incluído) -, elas ficaram na minha "gaveta" digital durante uns três anos. E raramente as revisitava. Senti logo que elas me diziam alguma coisa... Mas não sabia bem o que era. Foi só quando passei por uma experiência de perda de uma familiar muito próxima, que realizei o verdadeiro significado (e peso) dessa dicotomia de ausência/presença.

Foi assim que nasceu esse projeto que denominei de Spectrum, numa referência às notações científicas da natureza (sempre em latim). Para definir essas linhas narrativas, joguei com as dicotomias aparentemente contraditórias (mas que na verdade se completam como duas faces de uma mesma moeda), que refiro acima.

Há sempre uma realidade exterior e, depois, há uma realidade interior que tem de dialogar com esse mundo externo, para assim o conseguir percecionar. A consciência desta dupla realidade faz sonhar e leva à poesia. E o Mário Verino Rosado, sem ter inicialmente conhecimento deste meu projeto, contextualizou e completou de modo brilhante através da sua escrita, esse exercício poético que eu estava a tentar fazer com imagens! Eu soube do seu texto puramente por acaso, quando ele o publicou numa rede social. E foi o casamento perfeito para toda aquela exposição. Tanto assim foi que, por grande cortesia do Mário Rosado, esse texto integrou o catálogo da exposição, que partilharam recentemente.

 

Como o João Paulo Barrinha já referiu, o projeto “Walking Camera Project” contempla a fotografia àla minute. Como é que as pessoas reagem à personagem que criou?

O conjunto de atividades de fotografia à la minute são o núcleo duro do meu projeto "Walking Camera Project". Esse foi também o subprojecto que mais dores de cabeça me deu. Embora tenha ido beber claramente influências a toda a tradição da fotografia à la minute (principalmente em Portugal), logo quando comecei a estudar a forma de o estruturar, decidi que não me interessava fazer um simples pastiche do que eram os fotógrafos à la minute de praia. Eu queria mais que isso! A começar pela qualidade que se pode obter das imagens. […]

Acabei por me basear, em termos de funcionamento mecânico, num modelo de câmara muito usado no Afeganistão (e denominado de Afgan Camera), mas acrescentei-lhe umas melhorias de minha autoria. E depois de algum desperdício de caixas de papelão cheguei a esse modelo, inteiramente original, com formas humanoides reto-futuristas ou robóticas (as crianças dizem que faz lembrar um robot antigo), que mandei posteriormente executar em madeira. […] Todo esse processo ainda demorou dois anos.

Foi só depois de finalizar a construção da câmara que eu resolvi criar o personagem do fotógrafo antigo, sendo que, nas minhas primeiras aparições (em Santa Cruz, em colaboração com a artista Leonor Brilha), ainda não tinha esse personagem definido.

Abro aqui um parêntesis para dizer que o teatro nunca foi a minha área forte. […] Mas acontece que aquela máquina estava mesmo a pedir um fotógrafo a condizer. E todo o projeto pedia alguma dose de teatralidade. Por isso, também nessa área tive de me reinventar. E agora, para me defender, costumo dizer que não sou ator, mas sim um fotógrafo que finge que é um ator que faz papel de fotógrafo. […]

Uma vez que toda a fotografia tem que ver essencialmente com um registo estático de um pequeno período de tempo muito específico... E também porque, de modo metafórico, a fotografia permite-nos viajar no tempo, às nossas memórias... E ainda porque gosto de ficção científica, resolvi casar esses conceitos de viagem no tempo e de tempo parado com a forma de pregão de feira de fenómenos do século XIX. Foi assim que surgiu o pomposo nome A Fabulosa Máquina de Fazer Parar o Tempo, também inspirado no romance A Máquina do Tempo, de H. G. Hells.

Mas esta "fabulosa máquina" só por si não era suficiente, ela tinha que ter um operador. E como tinha sido um modelo inteiramente criado por mim, passei a assumir o papel de um fotógrafo inventor do século XIX, amigo do inventor da máquina do tempo e que, por isso, tinha viajado até ao futuro para ir buscar algumas das peças com que tinha construído aquela máquina de fazer parar o tempo, que seria uma máquina de viajar no tempo, mas ao contrário.

Toda esta efabulação destina-se essencialmente a explicar fotografia às crianças. E de facto, são elas que mais a apreciam, quando me perguntam o que é aquela máquina. Muitas vezes, em vez de dizer simplesmente que é uma máquina fotográfica, entro nesse personagem e explico que é uma máquina de fazer parar o tempo, ao mesmo tempo que desenrolo uma versão abreviada desta história. É uma história que, aposto, elas não esquecem.

E mesmo os adultos, normalmente têm apreciado. É comum pedirem para me fotografarem, inclusivamente fazem selfies comigo. E assim tornei-me involuntariamente numa personalidade ou artista de rua, ao nível do homem-estátua ou do malabarista de rua. Mas muitos também gostam simplesmente de ver, por dentro, o modo de funcionamento da câmara fotográfica, assim como as minhas explicações de todo o processo. E, na generalidade, compreendem que um retrato feito daquela forma transforma-se automaticamente num momento especial. Aquele é o momento do seu retrato, irrepetível, e onde eles são verdadeiramente importantes.

Última atualização: 06.08.2020 - 15:05 horas
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