Alexandre Bonifácio
01.09.2017
António Alexandre Bonifácio é há várias décadas o líder do grupo de teatro amador das Carreiras. Há alguns meses este grupo, que é um caso singular no país na área do teatro amador, iniciou a representação do seu mais recente trabalho, intitulado “Alto e Para o Baile!”. À [Torres Vedras], Alexandre Bonifácio fez um balanço da sua carreira artística, agora que está a chegar ao seu término, tendo em conta os seus 72 anos de idade, e abordou ainda outros temas, como a tradição teatral naquela localidade da freguesia da Carvoeira e o seu futuro, a atual peça em cena, a realidade do teatro amador, para além de outras questões como o facto de ter sido o primeiro presidente da Junta da Freguesia da Carvoeira eleito após o 25 de abril…
Começava por lhe perguntar de onde vem o seu gosto pela representação, quando começou a representar?
Nem eu sei bem, sei que sempre gostei desde miúdo, vim para o grupo com 13 anos, como figurante, até que comecei a entusiasmar-me e a fazer papéis. Até que em 1974, quando já era eu que ensaiava, mas o diretor artístico era o senhor Joaquim de Jesus Gaspar, acabei por pegar no grupo, devido à sua doença, até hoje.
Esteve sempre ligado ao grupo das Carreiras, nunca teve outra experiência na área do teatro?
Nunca pertenci a outro grupo. Sempre ao grupo das Carreiras.
Que balanço faz de todos estes anos ligado ao teatro, não só pessoalmente, mas também deste grupo que tem dirigido?
Eu acho que é uma cultura muito engraçada para as pessoas aqui nas Carreiras, acho que todas as casas deram gente para o teatro, umas com mais intensidade, outras com menos intensidade, mas todas deram gente para aqui. Passaram por aqui centos de rapazes e raparigas.
E de onde vem a origem do gosto pelo teatro nesta localidade?
Não faço ideia, isto começou ainda eu não era nascido. Já existia, entretanto nunca parou e depois há os que gostam e os que não gostam. Mas tivemos de optar pela área das revistas porque é o que dá dinheiro e pessoal. Porque as peças de teatro fazíamos cinco, seis vezes, e acabava, não dava mais, não havia público, e com peças de grande nível. Mas agora não, as pessoas querem divertir-se, não querem pensar muito, querem rir-se, querem ouvir cantar bem, e querem luzes e cenários. E pronto, é assim. Por isso, na peça anterior, passaram por aqui entre dez e quinze mil pessoas. Tivemos sempre casas esgotadas, mas a um mês de distância. Vem gente de todo o lado, chegámos a juntar pessoas de quatro excursões. É muita gente, fora as outras pessoas.
E como conseguem trazer tantas pessoas de fora, não só de concelhos limítrofes, mas também de outros mais afastados?
Não sei, isto já começou a ganhar forma de há uns anos e agora são os excursionistas que ligam para cá. E já temos clientes muito antigos. Vem gente da Chamusca, da Golegã, de Rio Maior, de Tomar, de Sintra, vem gente de todo o lado…
O feedback do público em relação à atual revista está a ser positivo?
Muito bom. Acho que é das melhores revistas que já fizemos até hoje. Está muito luxuosa, muito bonita, tem uns cenários espetaculares. Custou foi muito dinheiro, porque custa muito dinheiro fazer uma coisa boa. São coisas que implicam mão-de-obra, carpintaria, guarda-roupa, mas o resto é tudo de borla. A senhora do Planeta dos Tecidos, por exemplo, faz o favor de nos deixar começar a pagar só quando se começar a faturar. Isso é muito bom para nós porque não tínhamos suporte financeiro para pagarmos à cabeça. Vamos arranjando o dinheiro e vamos pagando.
Todo este gosto pelo teatro implica algum sacrifício pessoal…
Isto é um vício como outro qualquer. As pessoas que andam aqui têm de gostar muito, senão não estavam para isso porque isto envolve as vidas das pessoas. Veem o calendário com as datas, e quem não puder nalguma data tem de avisar. Tem de se gostar muito disto. Isto exige sacrifício, dedicação, noites perdidas, às vezes de inverno as pessoas veem do trabalho, comem à pressa para vir ao ensaio que é às 9 e meia, 10 horas. E temos aqui muitas senhoras casadas, embora os maridos também andem aqui… Gostamos de representar, e cada vez se quer fazer melhor, e tem melhorado, não há dúvida que tem melhorado. O fascínio é algo que não se sabe bem dizer de onde vem. Porque nunca ninguém me ensinou a representar, nunca ninguém me ensinou como se dirige uma peça, eu sou um autodidata, pura e simplesmente.
O grupo de teatro das Carreiras é um caso singular no país…
Sim. Estou convencido que a nível de teatro amador não há nada igual a isto. Já várias pessoas me o disseram. Uma delas foi o padre Melícias. Ele veio aqui, não o conhecia pessoalmente, foi dar-me os parabéns, disse que já sabia que isto era bom, já tinha tido informações várias, mas não fazia ideia de ver aqui uma coisa destas. Disse até que nunca tinha visto nada amador tão profissional. Aqui exigimos uns aos outros. Quem vem ver a revista não perde tempo nenhum, é tudo seguido. Entra um sketch, uma música, é sempre a andar…
É um entrosamento, uma mecânica, que já ganharam ao fim de muitos anos de trabalho conjunto…
Eu costumo dizer que isto é como a Fórmula 1, a mudar pneus ganha-se corridas. E aqui é igual. Meio minuto à espera numa sala é uma eternidade. Não pode ser.
Esta atividade já tem cerca de um século, pelo que me disse. São as próprias pessoas aqui das Carreiras que vão crescendo dentro deste espírito…
Há aqui raparigas que agora já são mães, que vieram aqui para a revista dentro da barriga das mães. E já andam cá com filhos...
Acha que este tipo de atividade faz mais felizes as pessoas que estão aqui?
Acho que sim. As pessoas têm de ser quase família. Às vezes há tricas, há pegas, ralhamos, mas é para o bem disto…
Está atualmente a completar sessenta anos de atividade teatral. Que papéis mais o marcaram, mais gostou de representar?
Eu considero que não sou um ator cómico. Sou capaz de fazer um papel cómico, mas não sou um ator cómico. Eu gosto de um papel sério. Fiz vários. Mas na revista também tenho papéis que gosto. Para esta revista a Dália Franco escreveu um monólogo que eu adoro fazer. É um número sério. Uma revista à portuguesa, com tudo o que tem para rir, também aguenta um número sério.
Acha que a revista e o teatro têm futuro numa altura em que os programas de entretenimento, os reality shows e a internet vão se sobrepondo a essas formas artísticas mais tradicionais?
Eu não sou futurologista, mas nós aqui não notamos diferença. As pessoas aderem, veem, e toda a gente sai daqui satisfeita. Há pessoas que veem aqui quatro e cinco vezes ver uma revista. Agora, o futuro não sei. Eu já estou na fase final da minha carreira. Tenho 72 anos e a gente tem de saber retirar-se. Por exemplo, na última revista ainda ia ali à passerelle e agora tenho medo de ir, as alturas já me começam a transtornar. Se isto correr normalmente, quando esta revista acabar tenho 78. E vou pôr-me a ensaiar uma revista com 80 anos?
Acha que esta tradição da representação vai permanecer nas Carreiras?
Eu tenho cá gente que sabe fazer de tudo. Agora, é necessário arranjar um líder. Eu já quase não preciso de fazer nada. Tenho cá gente que sabe fazer tudo. Agora, um líder não sei. Por enquanto não estou a ver ninguém ou estou a ver toda a gente. Eu penso que isto não vai morrer, mas não sei…
E o projeto do museu dedicado ao teatro na Carreiras, acha que era importante?
Eu acho que era, mas aquilo é muito trabalhoso. A gente tem aí muita coisa capaz, mas isso já não é comigo. Quem está a tratar disso é a direção. O presidente da junta já se ofereceu para ceder a escola, e a gente podia fazer ali uma coisa bonita…
Repare, que quando se começou aqui a fazer peças era com petromaxes no teto, em garagens e adegas. Dantes não tínhamos projetores, não tínhamos nada. O primeiro projetor que aqui se arranjou era o farol de uma camionete, com um vidro de plástico, encarnado e verde, e estava ali uma pessoa de cada lado. Foi uma evolução. Hoje temos um palco maravilhoso, com luzes e som e tudo como deve ser. Não tínhamos som na sala praticamente. Agora temos micro de peito, temos tudo. E não temos mais porque não há mais dinheiro, senão tínhamos mais. Com mais dinheiro podíamos fazer tão bom como eles fazem em Lisboa profissionalmente.
Que atividades profissionais desempenhou ao longo da vida? Como conjugou a sua vida profissional com o teatro?
Eu fui sempre comercial. Estive na Ford, na Iveco, onde ainda estou, embora não a tempo inteiro. Mas o trabalho que desenvolvo aqui é à noite. Isto é tudo feito à noite. Ninguém vem para aqui de dia porque cada um tem os seus trabalhos. Quando é a altura de pôr a cena em pé é sair daqui às três e quatro da manhã.
O improviso por vezes também acontece nas vossas peças?
Mais nada, tem de se desenrascar, mas também não convém estar a inventar muito. Mas havia um indivíduo, o Brotero Franco Faria, que foi dos atores mais completos que conheci, aprendi muito com ele, que tinha um talento especial nesse aspeto. A primeira peça em que entrei, em 1959, era uma comédia que se chamava “Entre marido e mulher”. Foi a primeira peça que fiz, já tinha 15 anos e um aspeto de homem, e por isso deram-me um papel. E a peça acabava com um a dizer “Entre marido e mulher” e o outro dizia “Ninguém mete a colher”. Uma vez, no Olhalvo, o individuo que devia dizer “Entre marido e mulher” disse “Entre mulher e marido” e o Franco Faria disse “Ninguém se deita ao comprido” (riso). São aquelas coisas que saem, mas não é para todos. Ele era muito engraçado, era um ator de primeiro plano…
Lembra-se de mais peripécias que tenham acontecido ao longo da sua vida teatral?
Há também uma outra com esse senhor. Havia um sketch em que lhe dava uma chapada e uma pessoa que estava a assistir à peça fez-lhe confusão em como eu não o aleijava. Então repeti o número com ele em frente a essa pessoa, mas dei uma chapada a sério ao Franco Faria. O espetador ficou mesmo convencido que aquilo doía (risos).
Outra história engraçada aconteceu no Parque de Jogos de Santa Cruz. Estava a fazer um papel de bêbado em que a partir do público interrompia quem estava no palco. Houve alguém que não percebeu a cena e queria entrar em confronto comigo…
Tem referências, atores, que de alguma forma tente imitar?
Não, eu nunca imitei ninguém. Mas considero que a minha forma de representar é do tipo do Nicolau Breyner. É um ator que não é muito cómico, não é um Camilo de Oliveira, um António Silva, um Vasco Santana, não é nada disso. Eu vejo que não sou um ator cómico. O meu filho é cómico por natureza, ele tem aí papéis que só visto! O cómico nasce com a pessoa, a pessoa que não é cómica, no palco, quanto mais engraçado se quiser fazer, menos graça tem…
Os vossos papéis são criados a pensar na pessoa que o faz…
Os papéis têm sido escritos mais ou menos a pensar nas pessoas que temos. A Dália escreve os sktechs com graça, mas tem de ser a pessoa a lhe dar a graça. O sketch se for bem feito é que tem a sua graça.
Os romanos tinham uma palavra, “persona”, que em latim significa a mesma coisa: “pessoa” e “personagem”. E como estava há pouco a referir, é impossível despojarmo-nos da nossa personalidade e encarnarmos completamente a personagem que temos de representar…
Sei que é assim. Eu costumo dizer aqui que a revista não tem nada a ver com as peças de teatro boas. A peça de teatro é uma coisa muito mais séria, embora isto também seja sério, mas é sério a brincar. Nós não podemos vir para aqui fazer palhaçada. Ser cómico não é ser palhaço. Eu respeito muito os palhaços. Os palhaços para mim são grandes atores. A gente pode ser cómico sem ser ridículo.
Muitas vezes a forma mais eficaz de se falar de uma coisa séria é a brincar…
É sim senhor, disso não tenho dúvidas nenhumas. A brincar diz-se coisas muito sérias. Mas há revistas que têm ordinarices, eu não gosto. Gosto de brejeirice, que é muito diferente. Enquanto eu cá estiver, não nada há disso…
Foi o primeiro presidente da Junta da Freguesia da Carvoeira eleito após o 25 de abril. Que importância teve essa experiência para si e que importância atribui ao poder local no desenvolvimento dos territórios?
Aprecio muito. Quando se deu o 25 de abril formou-se uma comissão administrativa para a junta e para a casa do povo, tudo em conjunto. Vieram ter comigo, eu não tinha experiência política nenhuma, nem tenho, e aceitei ajudar. Entretanto começou-se a ver que era muita gente junta, e dividiu-se, metade para a casa do povo e metade para a junta. Eu fiquei com a parte da junta. E a seguir veio as eleições livres. E eu pensei em não me candidatar. Mas depois houve alguém que disse que eu não me candidatava porque sabia que não ganhava, e toda a gente tem o seu pontinho de vaidade. Então quis saber se ganhava ou não. Candidatei-me e ganhei nas três mesas. Estive na junta democraticamente eleito. Na altura o Chico Manel perguntou-me se eu podia ir fazer uma assessoria aos SMAS. E eu fui. Estive lá, mas nunca estive a tempo inteiro nem nada que se parecesse. Tive lá reuniões das 9 da noite às 5 da manhã, mas aquilo foi temporariamente. A junta foi até acabar o mandato. Quando acabou o mandato, não quis mais. Não sou político.
Gostaria de deixar alguma mensagem final aos leitores da revista Torres Vedras?
Que venham ver o espetáculo, porque vão gostar de certeza absoluta…