Eugénia Lima
01.11.2011
Eugénia Lima, aquela que é para muitos a melhor acordeonista portuguesa de sempre, é a entrevistada desta edição da [Torres Vedras]. Embora não seja torriense, desde nova criou uma ligação muito forte ao concelho, por ter animado inúmeros bailes nas suas mais diversas localidades, o que a tornou uma autêntica “lenda viva” nas mesmas. Ao som do seu acordeão muitos namoros e casamentos tiveram início! Este ano o Município resolveu homenageá-la no âmbito do Festival Internacional de Acordeão de Torres Vedras, à semelhança do que tem acontecido em vários locais do país. À [Torres Vedras] Eugénia Lima falou, na sua casa, em Rio Maior, da sua carreira, do seu percurso de vida, do actual momento da música de acordeão em Portugal e da evolução da mesma no país, e, como não poderia deixar de ser, da sua ligação ao concelho, terra de que tece rasgados elogios…
Como começou a sua aprendizagem do acordeão?
O meu pai era afinador de acordeões, tinha muitos lá em casa e comecei a brincar com eles logo com 1 ano ou 2. Tanto brinquei, que com 4 anos já tocava acordeão. Quando os fregueses do meu pai iam buscar algum acordeão e ouvia o seu som vinha a correr, ficava ali embevecida a vê-los tocar. Depois, continuei a tocar, a trabalhar, aprendendo mais e melhor, sempre com o mesmo entusiasmo, porque de facto, desde muito pequenina, sempre gostei muito de música.
Aprendeu, então, a tocar acordeão sozinha?
Sim. Nunca tive nenhum professor de acordeão. Considero-me com uma certa satisfação autodidacta, porque simplesmente com seis anos tive um professor de solfejo e teoria, mas que nada me ensinou da prática de instrumentos. Depois, para pôr a música em prática no instrumento tive um bocado de trabalho, naturalmente. Já tinha 52 anos quando fui a França tirar o meu diploma de professora de acordeão. Estive lá uma temporada e no Conservatório de Acordeão de Paris obtive o meu diploma.
Como iniciou a sua carreira?
Comecei muito pequenina, até aos 12 anos tocava em festas. Assim que souberam da minha existência começaram a chamar-me a “miúda de Castelo Branco”. Na Beira Baixa levaram-se a quase todas as aldeias, era muito querida lá, havia uma admiração muito grande por mim. Com 8 anos fui pela primeira vez a Lisboa actuar como atracção numa revista chamada “Peixe Espada”. Até que aos 12 anos fiz o primeiro baile sozinha, na Vala do Carregado. Até aí apenas tinha tocado com colegas em bailes “caseiros” na Beira Baixa. A partir de então comecei a tocar no concelho de Alenquer e depois passei para o concelho do Sobral e para o de Torres. No concelho de Torres Vedras toquei pela primeira vez, tinha os meus 14 anos, na Vila Seca. Lembro-me que fui de autocarro com a minha mãe até à Merceana e depois fomos até à Vila Seca a pé. Naquele tempo era assim. Agora os acordeonistas são uns fidalgos… E naquele tempo, no tempo da guerra, para vir de Castelo Branco até cá abaixo para fazer um baile perdia 3 noites. Só com 19 anos tirei a carta e comecei a ter mais autonomia. Aliás, os carros foram a minha segunda paixão. Mas antes disso, para ir tocar, muitas vezes tinha que ir a pé, debaixo de chuva, de calor, com frio, o que eu sofri…
Fez muitos bailes no concelho de Torres Vedras?
Mas há alguma aldeia no concelho de Torres Vedras onde nunca tenha tocado? Há peripécias que se passaram comigo no concelho de Torres Vedras, que embora tenham implicado um certo sacrifício, recordo com muita saudade. Uma dessas foi numa noite de passagem de ano de muito frio no Catefica. Estava a tocar num palco alto e a minha cabeça estava perto do telhado que era de telha vã. O frio era tanto que eu não aguentava, e então iam buscar tijolos, aqueciam-nos e punham-me debaixo dos pés, porque eu tinha os pés entorpedecidos. O baile teve de acabar às 2 da manhã, quando normalmente terminava às 5 ou às 6. Para dizer a verdade, até tenho saudade desses tempos. Se pudesse recuar no tempo, preferia ter aquele público, aquela gente, apesar de sofrer, porque era um sofrer que sabia bem. As pessoas tratavam-me tão bem…
Gostava das pessoas de Torres Vedras?...
Muito. Sempre gostei, e as pessoas de Torres Vedras sempre gostaram de mim. O concelho de Torres Vedras foi o sítio onde eu mais toquei, à semelhança dos de Alenquer e Sobral de Monte Agraço. Às vezes estava 15 dias na zona de Torres a fazer bailes, sem ir a casa. Recordo-me que chegavam a falar comigo para ir tocar, mas já tinha contrato, e até adiavam a festa! A força dos bailes que eu fiz foi naqueles concelhos e no de Mafra, apesar de ter actuado em todo o país.
E as pessoas não se esqueceram de mim. Tenho em Torres Vedras muitos amigos. Tenho até um grupo de amigos, a que eu chamo a minha tertúlia, que são aí uns 100, e mais de 50% são do concelho de Torres Vedras. Sempre gostei muito da cidade de Torres Vedras. Às vezes ainda me meto no carro e vou lá fazer compras, porque gosto realmente de lá ir.
Torres Vedras tem se modificado…
Torres Vedras tem crescido muito. Quem viu aquela terra há 70 anos e a vê agora, alguma vez é a mesma coisa? Torres Vedras está linda, grande e bonita, uma grande cidade…
Há outras peripécias da sua carreira que recorde particularmente?
Quando me fazem essa pergunta vem-me um turbilhão de ideias à cabeça, porque são tantas as histórias que ao distinguir esta ou aquela tenho receio de ferir a susceptibilidade de alguém. Mas posso distinguir algumas.
Há pouco tempo, no programa “Companhia das Manhãs” da SIC, fui surpreendida por colegas que apareceram a tocar músicas minhas, para além de amigos da minha tertúlia e da presidente da Câmara de Rio Maior. Isso emocionou-me muito. Também me emocionou a festa dos meus 25 anos de carreira no Pavilhão dos Desportos e as de 50 anos em Castelo Branco e Loulé.
Considero-me uma pessoa afortunada, porque tenho muitos amigos, que me dão muito alento, e às vezes até me esqueço que estou doente, com Parkinson, porque eles não me deixam lembrar disso.
Ainda hoje, às vezes, há pessoas que me dizem que dançaram tanto ao som do meu acordeão! Até dizem que foi ao som do meu acordeão que começaram a namorar e até casaram, e isso acontece principalmente no concelho de Torres Vedras…
Também actuou no estrangeiro?
No estrangeiro toquei mais em países onde havia comunidades portuguesas, como na França, que é o país do acordeão. Toquei também em outros países como na Espanha, na Bélgica, na Alemanha, na Áustria, na Itália, nos Estados Unidos, no Canadá, na Venezuela, na Argentina, no Uruguai, no Brasil, em Angola, na África do Sul, em Moçambique e na Rodésia. Claro que gostava muito de tocar para os portugueses que lá estavam, e às vezes até me emocionava quando, por exemplo, ouvia o hino, porque sou muito agarrada ao meu país. Fui sempre muito bem recebida, acarinhada, e ainda hoje me correspondo com algumas das pessoas que conheci lá, que até me visitam quando vêem a Portugal.
Antes de se fixar em Rio Maior onde viveu?
Rio Maior é para mim a minha segunda cidade. Vivi em Castelo Branco até aos meus 18 anos, depois fui para o Cartaxo onde vivi 10 anos, mas a minha mãe estava muito doente e tivemos de ir para Lisboa. Depois de ter perdido a minha mãe vim a Rio Maior passar uma temporada e criei aqui amizades muito grandes, as pessoas trataram-me tão bem que acabei por ficar aqui. Sou uma filha adoptiva de Rio Maior. Gosto muito de aqui estar, gosto muito das pessoas. Nunca gostei de morar em Lisboa, é um grande centro, mas lá ninguém se conhece. Há 40 anos que estou em Rio Maior.
Qual foi, na sua opinião, o segredo para o seu sucesso?
Costumo dizer que sou uma pessoa afortunada e que Deus resolveu proteger-me. A primeira sorte que eu tive foi a de ter sido a primeira mulher a tocar acordeão. A segunda foi a de ter um nome naturalmente sonante. E a terceira foi a do público gostar de mim, se ter afeiçoado a mim, porque eu tocava músicas que ele gostava de ouvir. Quando comecei a fazer os bailes procurava ser diferente dos meus colegas porque comecei a compor muito nova e mais de metade das músicas que eu tocava eram da minha autoria. As pessoas habituaram-se à minha interpretação, à minha maneira de tocar, e resolveram fazer de mim gente. Tudo o que eu sou devo-o ao público. Hoje é muito fácil ser-se rapidamente um artista conhecido. Vamos à televisão e em três minutos ficamos conhecidos. No meu tempo não era assim, o nome no meu tempo ficava mais sólido. Porquê? Porque íamos a uma aldeia, essa aldeia passava a palavra a outra, depois passava a palavra à vila, daí à cidade. Quando se ia ao estrangeiro os jornais davam conta de tudo. E há também artistas que são muito bons mas que não têm sorte, e eu fui uma pessoa muito afortunada, por isso dou todos os dias graças a Deus, também por cá estar e estar como estou apesar de ter a doença de Parkinson. Se não fosse essa doença tinha continuado a fazer melhor e a evoluir, mas assim estacionei…
Das músicas que compôs há algumas que destaque em particular?
Sim, por exemplo, um fado que fiz que se chama “Minha vida, meu sonho”, o “Noitinhas”, uma bazurka francesa que compus com 14 anos, e uma rapsódia que eu fiz a partir de danças e cantares do país chamada “Aguarela Portuguesa”. Mas o meu maior sucesso não tem sido as minhas músicas, mas as que outros compuseram e de que eu fiz arranjos, como é o caso da “Coimbra” e da “Lisboa Antiga”, do saudoso maestro Raul Ferrão.
Foi também responsável pela introdução de novas técnicas na utilização do acordeão…
Talvez uma nova interpretação. Os meus colegas falam muito da minha mão esquerda, que é a mão do acompanhamento. A minha mão esquerda desenvolveu-se porque como aprendi sozinha a tocar acordeão comecei a inverter, a fazer a melodia na mão esquerda e o acompanhamento na direita, o que não se tinha feito até aí. Eu comecei a desenvolver a esquerda por intuição, até talvez por ignorância. Mais tarde fui ainda mais longe porque comecei a fazer melodia com a mão esquerda e com a direita ao mesmo tempo. Na França, sobretudo, é onde me têm distinguido mais, porque é a pátria do acordeão.
Na sua opinião a que se deve o sucesso do acordeão em Portugal, principalmente nos meios rurais?
Quando comecei a tocar, a concertina já estava implantada. E o acordeão começou no Algarve através de um homem que foi o carinhosamente chamado mestre José Ferreiro. Havia nessa altura acordeonistas muito bons no Algarve que constituíram a Orquestra Típica Algarvia. Essa orquestra correu o país, o que levou muitas pessoas a começar a gostar do acordeão. E talvez porque quando comecei a ter sucesso era muito novinha, houve muita gente a entusiasmar-se a tocar. Mais tarde apareceu o professor Vitorino Matono que fundou a academia com o seu nome e divulgou o acordeão de forma espantosa…
Acha que o acordeão actualmente é devidamente valorizado em Portugal?
Agora é. Continuamos a ter concorrentes ao campeonato do mundo e que o ganham. O acordeão está implantado em Portugal com muita força e dignidade. Veja, há por aí tantos professores de acordeão e todos têm alunos. E temos professores muito bons de acordeão… É muito gratificante ouvir esta juventude a tocar acordeão. Aí há uns 30 anos atrás estava a ver o acordeão a morrer, mas tinha fé de que ia voltar a ser o que era. E já está. Já posso morrer descansada…
Considera positiva a iniciativa do Município de Torres Vedras de ter criado um festival internacional de acordeão?
Acho que essa iniciativa foi magnífica. O ano transacto assisti ao concerto do Raul Barboza e fiquei encantada de o ouvir. Eu tenho uma grande admiração por Torres Vedras e até quero aproveitar a oportunidade para agradecer ao senhor presidente da Câmara e aos seus colaboradores por fazerem um festival internacional de acordeão em Torres Vedras porque nenhuma outra cidade fez isso e algumas até tinham obrigação. É realmente uma coisa digna que se está a fazer em Portugal, já ultrapassou fronteiras, já se fala disso em todo o lado. Os acordeonistas portugueses e estrangeiros que têm vindo a Torres Vedras têm ficado encantados e ficam a conhecer uma linda região, é realmente bonito, tratar o acordeão assim é muito bom…
Está feliz com a homenagem que o Município de Torres Vedras lhe resolveu prestar?
Naturalmente que sim. Têm-me feito muitas homenagens, mas a homenagem feita pelo Município de Torres Vedras tem uma importância muito grande porque faz o festival internacional de acordeão. Até pelo facto de existir tantos e bons colegas no país, estou profundamente grata por Torres Vedras se ter lembrado de mim.
Entrevista extraída da edição nº5 (novembro/dezembro de 2011) da revista municipal [Torres Vedras]