Francisco Manuel Fernandes
12.08.2024
Foi presidente da Comissão Administrativa do Município de Torres Vedras após o 25 de Abril. Desde as primeiras eleições autárquicas e até janeiro de 1998 foi vereador da Câmara Municipal de Torres Vedras, tendo sido responsável por vários pelouros. Deputado na Assembleia da República, membro da Assembleia Municipal de Torres Vedras e elemento de órgãos sociais de várias associações torrienses, Francisco Manuel Fernandes acompanhou de perto os 50 anos de democracia no Concelho.
Francisco Manuel Fernandes esteve à conversa com a Revista Municipal.
O Francisco nasceu em Torres Vedras em 1950. Do que se lembra do Concelho enquanto crescia?
Tenho memórias de familiares que viviam na 1º de Dezembro, em prédios que já não existem e da instrução primária, que ainda era neste edifício onde está a Câmara Municipal hoje. Fui inaugurar a chamada Escola do avião. Recordo-me do Carnaval, de um carro no corso que era uma galinha e nós éramos os pintainhos ali à volta. Tenho também outra recordação, e essa sim, muito marcante, em 1958. Estava em casa de cama, com gripe, quando prenderam o meu pai pela primeira vez. A PIDE entrou em minha casa, obrigou-me a levantar, virou a cama de pernas para o ar. Abriu as gavetas, deitaram as coisas para o chão. Se estivessem lá coisas escondidas, eles nem veriam. Foi aí, em 1958, que eu visitei o meu pai na prisão e, para um rapaz de 8 anos, é marcante. Marcou politicamente bastante a minha vida.
Foi estudar para Lisboa no Instituto Superior Técnico, estando nos órgãos sociais da Associação de Estudantes. Como foi essa experiência?
Antes já tinha tido atividade no Técnico, na Associação de Estudantes, mesmo antes de ter sido eleito vice-presidente da Assembleia Geral, num período bastante conturbado. Em 1971 várias vezes o Técnico foi fechado, até que foi fechado quase que em definitivo já em 1972. Nessa altura eu vim dar aulas para o Liceu de Torres Vedras para a secção da Lourinhã. Éramos 7, entre os quais o professor José Travanca e os pais da senhora vice-presidente da Câmara Municipal. Já tinha atividade política nessa altura. Fui candidato da oposição nas eleições de 1973 pelo círculo de Lisboa, era o candidato mais novo, tinha 23 anos.
De que momentos marcantes de oposição ao regime se recorda?
Aqui em Torres Vedras, numa sessão do Teatro-Cine, no dia 8 de outubro de 1973, fomos interrompidos pela polícia de choque. A polícia fechou o pano do palco, eu ainda vou para a frente a falar e quando cortaram o microfone eu berrava. A sessão foi mesmo interrompida e foi um dos atos marcantes a meses do 25 de Abril, quando não sonhávamos que iria acontecer.
Há um acontecimento marcante já no ano de 1974. Um dos presos de Torres Vedras, Fernando Vicente, que deu o nome a muitas ruas em Torres Vedras e no Paúl, onde nasceu, esteve preso no Tarrafal durante 13 ou 14 anos e voltou a ser preso em 1963. Era para nós uma pessoa simbólica da resistência em Torres Vedras no período da ditadura. Fizemos várias vezes romagens à campa de Fernando Vicente e, em 1974, no aniversário da sua morte, a 22 de janeiro, fizemos um apelo à população a participar na romagem.
A população de Torres Vedras era da mais ativa no país. Quando nos começamos a aproximar do Cemitério de São João, o espaço estava cercado de polícia de choque, com cães à trela entre os jazigos, uma imagem mirabolante dentro de um cemitério. Quando nos juntámos à volta da campa, cabia-me a mim intervir e, quando comecei, o chefe da polícia de Torres Vedras encosta-me a pistola às costas e manda-me calar. E eu calei-me, como é evidente. Em janeiro de 74, quem diria, que uns meses depois, festejaríamos nas ruas?
Em 1974 eu já estava a dar aulas na Henriques Nogueira, que era a escola técnica e às quartas-feiras saía sempre de casa mais tarde. Eu morava num prédio na 5 de Outubro, perto da Caravela. Nesse dia, a PIDE intercepta os meus pais de manhã na rua para que abrissem a porta. A minha mãe, mal entra, começa aos berros com a PIDE. Eu estava deitado, e tinha um bornal preparado. Visto-me rapidamente e corro para a outra ponta da casa. O ato já estava ensaiado, eu já tinha previsto ter de fazer isso. Descendo a rua 1º de Dezembro há um pátio que ia ter a uma carpintaria e do lado da 5 de Outubro havia outro pátio. Eu sabia que não podia sair nem por um lado nem pelo outro porque estavam preparados para isso. Então calculem por onde saí! Saí pelo quartel da Legião Portuguesa! O edifício ao lado do Teatro-Cine, que foi a Creche do Povo. Vou direito à Praça, que estava mais ou menos no mesmo sítio, e sou transportado para os lados de Santa Cruz. Localizam-me aí também e eu fugi para uma gruta entre o Alto da Vela e a Praia Azul. Fui transportado para Lisboa no sábado antes do 25 de Abril.
E como recebeu a notícia da Revolução?
A pessoa da casa onde estava disse-me: Acorda! Acorda! Há tanques na rua! E saiu-me pela boca fora: grandes ou pequenos? A pergunta era disparatada, mas a resposta ainda foi mais. “Pequenos!” Por acaso os que a pessoa tinha visto eram da Cavalaria 7, que eram os maiores que tínhamos. E eu digo: “Falhámos outra vez!” Corri para um rádio na casa e a emissora nacional estava fechada, que era o órgão mais controlado pelo regime. Aí deu-me esperança. Quando ouço o Rádio Clube há o noticiário “Aqui Posto de Comando do Movimento das Forças Armadas” e percebi o que se passava. Da parte da tarde saio. E a primeira pessoa que encontrei foi o Alberto Avelino na Avenida 5 de Outubro. Abraçámo-nos. Eu conhecia-o bem, porque me tinha dado explicações de inglês. Apanhei a automotora para Torres Vedras, onde cheguei às 6 da tarde.
E como é que encontrou Torres Vedras?
Depois de ter subido em minha casa para dar um beijo à minha avó, que já não via há muito tempo, desde que tinha fugido, vou de carro para Peniche, porque a nossa preocupação era a situação em que estavam muitos dos presos políticos. O meu pai estava preso, porque como não me encontraram, tinham-no levado a ele. Nesse dia, numa cervejaria que havia na 1ª de Dezembro, fizemos uma reunião da oposição, onde se decide marcar para as 18 horas, na Avenida 5 de Outubro, uma manifestação de apoio ao Movimento das Forças Armadas. Passámos a noite a pintar tarjas, não havia nada dessas coisas. Terminou-se no largo da estação e marcámos às 20h00 para irmos todos para Peniche. Partiram quase 200 carros e só saímos de lá quando saiu o último preso.
Exigimos que nos fosse entregue a sede da Mocidade Portuguesa e da Ação Nacional Popular (o nome do partido do regime na altura). Na segunda-feira, cerca-se o posto da Mocidade em frente do Café Império e o da Ação Democrática, em cima do Luís Pereira. Foi decidido subirem 3 democratas conhecidos, que iriam arrombar a porta. Fui escolhido eu, o doutor Troni e a doutora Lucília Miranda. Claro que arranjámos uma forma de não estragar a porta. Havia sessão de Câmara e decidimos todos ir. Estavam todos em sessão a votar uma moção de apoio ao MFA, e eu interrompo e disse: “seus hipócritas!”. Quando terminei de falar, o presidente deu por encerrada a sessão e, uns dias depois, todos são exonerados.
Eu tomo posse no dia 15 de maio. Marcámos a 8 de maio, no campo do Torreense, pedimos aos torrienses que ficassem depois de um jogo e discutiu-se uma lista com 18 nomes. (…) Ficou combinado que seriam 9 efetivos e 9 suplentes, mas ficou combinado que todos participavam. (…) Fiquei eu a presidir, tinha na altura 24 anos.
E como foram esses dois anos até às eleições de 1976?
Da Comissão Administrativa, fazia parte o senhor Leal da Ascensão e o João Carlos, que foi o primeiro presidente da Assembleia Municipal eleito. Muitos ligados ou próximos ao Partido Socialista, vários ao Partido
Comunista, outros sem ligação muito específica, mas tudo gente da oposição e que tinha dado a cara na resistência. A Comissão funcionou de tal maneira, que foi das poucas do Distrito de Lisboa que não teve substituição a meio e foi até ao fim. Em 1976 sou eleito como vereador. (…) Havia uma cooperação. Na altura não havia situações de cada um puxar pelo emblema da sua lapela. O objetivo era defender os interesses do concelho de Torres Vedras. (…) Eu tive pelouros mesmo quando o Partido Socialista teve duas maiorias absolutas.
O seu balanço dos últimos 50 anos, qual é?
É que foi decisivo o 25 de Abril e é importante continuar a defendermos o 25 de Abril, porque atenção! O regime tinha apoios! Tinha muitos apoios! Não estava pendurado do céu. Essas pessoas é que se acobardaram e adaptaram-se às circunstâncias. Algumas, que já eram vivas na altura, hoje já mostram a cara. Hoje há posições de quem sentir-se-ia muito melhor no regime anterior do que hoje. Claro que não se atrevem a dizê-lo dessa forma, mas é a minha perceção. Os que lutaram e que conhecem essa luta devem estar sempre disponíveis para mostrar a vontade de defender o 25 de Abril.
E qual é a sua mensagem para a juventude que não viveu em ditadura?
É que procurem estudar um pouco da História, e aí tenho uma crítica. Poder-se-ia ter feito mais. A juventude deve procurar falar com os mais velhos e ter algumas noções. Há coisas marcantes que devem saber. Primeiro o grau de analfabetismo que existia em Portugal na altura. Depois, antes do 25 de Abril, Torres Vedras já era um Concelho grande, mas só 2 freguesias tinham mais de 1.000 eleitores - S. Pedro e Santiago e S. Pedro da Cadeira. Isto é marcante porque no início de 1975, quando se faz o recenseamento para as eleições livres, a freguesia de A dos Cunhados regista cerca de 4.000 e a Silveira ronda os 3.000 eleitores. Isto para se ver que o recenseamento era o que era, via-se os números que eram cortados dos cadernos eleitorais. É importante que a juventude de hoje procure ver o que era e que não vá só nos cantares que se ouvem e populismos, que aliás, são tão exagerados, que alertam para o que são.