João Catarino
27.08.2020
“Os desenhos que tive o privilégio de expor constituíram, na sua maioria, reproduções dos desenhos feitos em cadernos de viagem a partir dessas vivências, de forma direta e presencial, por lugares diversos da nossa costa”, partilha João Catarino sobre a mostra Desenhos e diários gráficos de João Catarino, que esteve patente na Paços – Galeria Municipal de Torres Vedras, em 2017.
Quem é João Catarino?
Certamente [o João Catarino é] resultante de um misto de características genéticas e adquiridas . Restrinjo-me a estas últimas, mais factuais e talvez menos abstratas.
Nasci em Lisboa mas, ainda antes de completar um ano, fui morar para uma pequena moradia num bairro novo da freguesia de Carcavelos, onde cresci e fiz amigos de infância, com quem sempre brinquei na rua sem grandes regras nem restrições, apenas com o compromisso de estar sentado à mesa nas horas marcadas das refeições.
O perímetro urbano do bairro, circuito de inúmeras corridas de bicicleta, confinaram fronteiras que se esbateram com a passagem à adolescência, nos novos amigos residentes nas novas periferias de Carcavelos, dos grupos de praia, dos recém-chegados das ex–colónias, da paróquia e dos escoteiros.
O ambiente de vivências resultante dessa periferia de classe média, renovada pelas novas famílias que definiram um novo contexto de permanência habitacional na linha do Estoril, que se distinguiam das de veraneio, fizeram de alguma forma o "chão" da minha formação social e escolar, até estudar em Lisboa na [escola] António Arroio, no início dos anos 80.
Factos contextuais geográficos e sociais que, de alguma forma, ajudaram a definir critérios de gosto, hobbies e afinidades que ainda perduram, como o entusiasmo pelo ar livre pela natureza e pelo mar.
Consegue conciliar o melhor de dois mundos, viajar e desenhar. Procura nas viagens um estímulo para a prática diária do desenho?
O desenho apareceu muito cedo, em criança, em idade ainda pré-escolar, como uma disposição ou curiosidade muito forte, resultante talvez de alguma timidez no interagir com outros amigos ou colegas de escola fora do contexto habitual dos amigos já residentes ou na eventual necessidade de encontrar um pequeno mundo confortável para o meu isolamento.
Talvez isso tenha estimulado o foco insistente numa direção e numa profunda atenção que se sustentava nessa prática constante, que implicou um consequente défice de atenção relativamente a outras matérias escolares e numa desenvoltura algo reservada da capacidade de sociabilização, mas que de alguma terá sido compensada diante dos outros no reconhecimento daquilo que vulgarmente se chama de “jeito” para desenhar. […]
O desenho de observação pode encerrar em si mesmo a ideia de viagem, o registo revelado na ligação da mão com o percurso do olhar é já em si uma viagem. Nesse sentido, pode questionar-se a ideia de que viajar terá necessariamente apenas a ver com o espaço ou a distância.
Desenhar e viajar pode ser um processo quase indissociável, tem a ver sobretudo com a dimensão temporal a que o desenho obriga e que poderá fazer retardar a viagem. Parece um paradoxo, mas, de facto, quanto mais desenhamos, menos distância podemos percorrer.
Talvez veremos um menor número de coisas, visitaremos certamente menos lugares, mas se desenharmos durante a viagem adicionamos saber e qualidade ao tempo que gastámos em cada um deles.
Creio que existe uma relação recíproca e simbiótica entre desenhar e viajar, o desenho proporciona o desejo de viajar e vice-versa. Mas são mais as vezes em que o desenho resulta de um momento, de um tempo, de um acontecimento ou de um imprevisto do que do planeamento de viagens especificamente com o intuito de desenhar.
No entanto, existe sempre uma relação com o tempo e o espaço, sendo que o tempo é fundamental para que ocorra essa predisposição necessária, para momentos que se tornam muito tácteis e imersivos entre o observador e o que é observado. É absolutamente determinante a concentração absoluta durante esse acontecimento, sem interrupções durante o processo e o tempo que for necessário. Daí que, mesmo que se desenhe todos os dias, esse estado ou predisposição possa nem ocorrer.
O que prefere pintar? Paisagens ou pessoas?
Não será tudo a mesma coisa? São geografias e os objetos que elas produzem. Não tenho preferência por nada em especial, mas sim pela relação dos elementos que fazem a paisagem, seja ela natural ou urbana, ou na indefinição de ambas, nos horizontes próximos e afastados... Mas confesso que me canso se precisar de contar muitas janelas de um edifício.
Como professor e orientador de workshops, muitas pessoas já deverão ter partilhado que não sabem desenhar. Como se ensina alguém a desenhar?
Parece um lugar comum, mas insisto: ensinar a desenhar é, sobretudo, ensinar a ver. A ver de novo com alguma ingenuidade na procura de ver pela primeira vez, mas sobretudo com a predisposição para aceitar o que se vê e como se vê, de acordo com a luz e com o ângulo, acrescentando ainda a liberdade de escolher o que se quer ver, podendo subtrair elementos do espaço observado e adicionar outros que se juntam com o tempo.
Normalmente os alunos preocupam-se mais com aspectos de carácter técnico que se prendem com a utilização de materiais e também com o esclarecimento de algumas outras regras, nomeadamente as de perspetiva. Colocam questões de ordem muito prática, procuram, por vezes, algum tipo de receita que lhes resolva no imediato algumas dificuldades que sabem identificar e que, com alguma insistência, aparentemente conseguem vir a resolver, obtendo resultados que consideram gratificantes. […]
“Espaço de terra estreita da linha de costa, fronteira entre um fim e um começo em permanente transformação, que percorro numa deambulação que reconheço como habitat. Não existe na origem destes desenhos qualquer intenção de serem expostos, não têm necessariamente de se inscrever em nenhum projeto ou intenção específica, são por vezes feitos absolutamente para nada e para ninguém.”
Recordamos estas palavras aquando da exposição Desenhos e diários gráficos de João Catarino, realizada na Paços – Galeria Municipal de Torres Vedras, em 2017. Qual o seu significado?
Na contextualização do lugar onde cresci referi esse “espaço de terra estreita”. Lugar de variadas vivências, espaço de liberdade, de ficar descalço e deitar no chão, sentir o sal e o sol no corpo, destino e fronteira, da terra e do mar, que as marés tanto retiram como repõem e que o surf veio potenciar ainda mais.
Os desenhos que tive o privilégio de expor na Paços – Galeria Municipal de Torres Vedras, para além de alguns originais de grande formato feitos intencionalmente para o efeito, constituíram na sua maioria reproduções dos desenhos feitos em cadernos de viagem a partir dessas vivências, de forma direta e presencial, por lugares diversos da nossa costa.
Desta forma, para que não houvesse algum compromisso que eventualmente os condicionasse, não houve à partida alguma ideia de carácter projetual ou qualquer intenção de resultarem numa exposição. Essa exposição resultou, por fim, de uma seleção de registos dessas mesmas vivências feitas da forma que considero mais libertadora, em cadernos de viagem, durante um determinado tempo, em sintonia com o natural deambular pela nossa linha de costa.