João Francisco
01.10.2019
Depois da escola e nas férias de verão ia até ao Aeroclube de Torres Vedras para ajudar no que fosse preciso. Foi lá que descobriu o gosto pela aviação e deu os primeiros passos enquanto piloto. Hoje, é comandante da TAP e preside, com orgulho, a instituição que impulsionou a sua carreira. João Francisco recebeu a Torres Vedras no hangar do Aeródromo Municipal de Santa Cruz, base do Aeroclube de Torres Vedras, para uma conversa com os “pés bem assentes na terra”.
Como é que surgiu o interesse pela aviação?
Acho que desde que nasci, na prática. O facto de morar aqui na Boavista, na Silveira, mesmo ao lado dos aviões, acabou por ser algo que desde sempre me lembro: estar ligado aos aviões e ver os aviões. […] Quando saía da escola vinha até aqui ao Aeroclube para ajudar no que era necessário e nas minhas férias de verão cheguei a trabalhar nas bombas de combustível e como ajudante de mecânico. Comecei a pôr as “mãos na massa” desde muito novo.
Começou no Aeroclube e atualmente veste a farda de comandante da TAP. De que forma é que a passagem pelo Aeroclube influenciou o seu percurso?
Influenciou na totalidade. A farda que tenho vestida e que honro, e fiz questão de fazer esta entrevista fardado, devo-a ao Aeroclube de Torres Vedras. É uma maneira também de agradecer, porque eu sou comandante da TAP graças ao Aeroclube de Torres Vedras. Foi importante no início da minha carreira, como também é importante agora.
É um orgulho conseguir chegar ao topo da carreira graças ao Aeroclube e agora ter a honra de presidir o Aeroclube e formar novos pilotos. […]
Foi também instrutor de voo. O que é que prefere: estar à frente de um avião ou também gosta de ensinar?
As duas coisas são muito nobres. O facto de sermos pilotos implica uma grande responsabilidade e, acima de tudo, um piloto tem que fazer a gestão de risco e essa gestão de risco vem com a experiência. Portanto, o facto de poder partilhar essa experiência com os alunos, com quem está agora a iniciar a carreira de aviação, é uma mais-valia e é algo também muito nobre. Portanto, meto da mesma maneira, no mesmo enquadramento, do que pilotar um avião. As duas são fascinantes.
Falou na questão da responsabilidade. Sente o peso dessa responsabilidade quando está a pilotar um avião com centenas de pessoas a bordo?
Sim, claro. É uma profissão que exige muita preparação, exige sermos extremamente assertivos. Eu refiro que um piloto de avião, um comandante de voo, tem que ser um profissional da assertividade. Temos de ser assertivos, temos que gerir o erro e perceber que vamos errar e saber aceitar esse erro, que é natural. Daí a cadeira mais importante na aviação não ser a Aerodinâmica nem a Meteorologia, mas sim Limitações Humanas, quer do ponto de vista fisiológico, quer do ponto de vista psicológico. […]
E enquanto piloto, qual é que foi o momento mais difícil que já passou?
Tive vários. Eu tenho mais de 10 mil horas de voo, quer como comandante de voo de transporte de passageiros, quer como instrutor de voo e reboque de manga publicitária. Mas de facto em 1995 - tinha tirado o meu curso profissional no ano anterior - estava a sobrevoar em reboque de manga publicitária a zona da Praia da Consolação e tive uma falha catastrófica de motor. […] Foi uma situação de muito rápida decisão, mas aí é que entra a boa formação, porque na prática o que nós [pilotos] treinamos é o erro. […] De facto, nesse momento estávamos preparados e sabíamos exatamente o que tínhamos que fazer. É claro que é preciso ter sangue frio, como é lógico. Tive que largar a faixa publicitária, escolher um sítio na praia para aterrar, porque havia espaço, e fazer algumas manobras de dissipação de energia, mas felizmente correu bem e senti-me preparado. […]
Voar é realmente uma paixão. É também praticante de parapente, inclusivamente já foi distinguido pela Federação Aeronáutica Internacional.
O parapente, convém referir, é uma aeronave, como todas as outras. Representa os 100 anos da evolução da aviação. […] Isto para dizer que a aeronave que me dá mais gozo voar é o parapente. É o oposto ao Airbus 320, porque estamos de facto em contacto com o ar. […] No voo em que fui distinguido, foi um dia interessante. E consegui fazer o voo porque segui um bando de grifos - pássaros quase com três metros de envergadura. Eles adaptaram-me no bando e durante duas horas e 30 [minutos], o voo foi de cinco horas, literalmente fui com eles e fizemos uma interação em voo muito interessante. Tentámos descobrir onde é que estavam as correntes ascendentes. Foi um voo que saímos da zona de Portalegre e fomos aterrar em Espanha, perto de Toledo. […]
O prémio que recebeu foi por esse voo em que fez cerca de 150 quilómetros sem motor.
Sim. Na altura foi o galardão de Ouro/ Diamante da FAI [Federação Aeronáutica Internacional], atribuído a quem fizesse esse tipo de distância. […]
Concilia tudo isto com o cargo de presidente do Aeroclube de Torres Vedras. A história do Aeroclube remete para o ano de 1946, quando foi constituído como instituição de utilidade pública. De que forma é que esta instituição teve influência no desenvolvimento da aviação em Portugal?
Teve muita e passo a explicar porquê. Estamos a falar de 1946, pós-guerra, havia um incentivo muito grande do Estado para o desenvolvimento da aviação e o Aeródromo de Santa Cruz era o aeródromo civil mais próximo de Lisboa. […] Santa Cruz foi o polo onde os pilotos da transportadora aérea TAP, que tinha iniciado também meses antes a sua atividade, mas acima de tudo a Força Aérea Portuguesa, do ramo aeronáutico militar, se encontravam. […]
O Aeroclube tem uma escola de voo. Que cursos é que é possível encontrar nesta escola?
[…] O curso de piloto pode ser feito por degraus, step by step, em que tira o chamado Brevet, que é o curso de piloto particular de aviões, e depois faz o upgrade para fazer a parte dos instrumentos e a parte profissional. Portanto, o Aeroclube permite fazer esse caminho, desde início até ao fim. Durante uns anos a vertente profissional era feita em parceria com outras escolas. A partir de janeiro, à partida, vamos ter novamente os cursos de piloto profissional, ou seja, um piloto pode fazer a sua formação toda, desde início até ao fim, aqui em Santa Cruz. […]
Para além dos cursos profissionais de piloto têm também outras formações…
Sim. Desde 2010, tentamos enquadrar o que deve ser uma instituição de utilidade pública de âmbito aeronáutico em pleno século XXI. E dentro desse enquadramento, nós definimos várias áreas de ação, uma delas a escola de voo. […] Nós somos pioneiros em Portugal com o curso de Introdução à Pilotagem. Começou em 2010 e já tivemos muitas centenas de pessoas formadas nesse âmbito. A maioria das pessoas tem um fascínio pela aviação, só que entrar no mundo da aviação é complexo e implica algum investimento. É um mundo, acima de tudo por questões legais, muito fechado, muito restrito. O nosso objetivo foi fazer um curso de alguns fins de semana para que as pessoas consigam perceber o que é a aeronáutica, o que é a aviação e qual é o mind set que os pilotos devem ter. […]
Contam também com um centro de ciência aeroespacial. Qual é que é o trabalho desenvolvido nesse âmbito?
A vertente científica do Aeroclube de facto é a nossa meta. […] Lançámos aqui algumas ações do ponto de vista científico para tentar perceber como é que reagia a comunidade científica, quer nacional, quer internacional, nomeadamente fizemos uma comemoração oficial dos 20 anos do lançamento do primeiro satélite português. […] A partir daí percebemos que tínhamos espaço na ciência em Portugal e que podíamos fazer algo muito relevante, porque, acima de tudo, a aviação é algo experimental. O conceito que nós queremos ter aqui no aeródromo é o de laboratório aeronáutico. Dentro dessa dinâmica, percebemos que havia possibilidade de fazermos vários projetos. Então definimos o Centro AeroEspaço, que é um centro de ciência do ar e do espaço do Aeroclube de Torres Vedras, com várias vertentes: uma vertente de projetos educativos, uma vertente de divulgação ao público em geral e para escolas e outra vertente de investigação científica. […]
A divulgação ao público acontece já com os batismos de voo que têm a decorrer. Como é que funcionam?
Os batismos de voo é algo que acontece há décadas no aeródromo. Temos milhares de pessoas que ao longo destes anos fizeram o seu primeiro voo aqui connosco. Nós agora estamos a dar uma roupagem diferente, queremos que além de se fazer um voo se aprenda e se retire algum conhecimento associado com isso. Daí nós passarmos a fazer, a partir de janeiro, o chamado voo científico, é idêntico ao batismo de voo. […] Na prática é um voo normal em que as pessoas vestem um fato de voo, têm uma prancheta e vão tirar parâmetros básicos, como a pressão atmosférica e a temperatura antes da descolagem e em altitude. Algo que quando as pessoas aterrem levem para casa mais conhecimento, não só a experiência de voar, mas acima de tudo que aprendam qualquer coisa. […]
O aeródromo tem também acolhido algumas atividades de âmbito cultural…
[…] O nosso foco é que devemos acolher o máximo possível de atividades, em que nessas atividades culturais consigamos também ejetar um bocado do que é o enquadramento aeronáutico. Na ação de cinema, que vai no terceiro ano consecutivo, temos também filmes ligados à aviação. Conseguimos ter ali uma interação interessante e, acima de tudo, ter cinema num hangar, ao lado de aviões, é inédito. Não acontece nem cá em Portugal nem no exterior. Nós tivemos agora um campeonato do mundo com várias seleções internacionais, de três continentes, e quando abordávamos isso diziam: “não conhecemos isso, mas é uma ótima ideia para começarmos a fazer”. […]
Falou no Campeonato do Mundo de Aviões “Air Navigation Race” que organizaram e do qual foi diretor. Como é que foi estar à frente de uma prova daquela dimensão?
Muita responsabilidade.
Foi a primeira vez na história dos campeonatos do mundo de aviação que se conseguiu atingir a meta de 86 voos num dia. Nunca tinha sido feito. […]
Queríamos tornar a competição numa competição em que as tripulações pudessem voar mais do que uma vez por dia para conseguirem melhorar os seus resultados. […] A responsabilidade é grande, porque foi uma prova inédita com este conceito. Muita coisa podia falhar. Tivemos a ajuda da meteorologia, que foi ótima, mas acima de tudo correu bem pela equipa que nós temos. […]
Acima de tudo, também queria deixar aqui uma parte interessante, que é o conceito que nós tivemos aqui no campeonato do mundo, conceito este que é diferente do resto. Nós optamos por não colocar as equipas num grande hotel, mas sim nas instalações hoteleiras aqui à volta do aeródromo, que estão a minutos a pé do aeródromo. E com a ajuda da Câmara Municipal [de Torres Vedras], com as Agostinhas, conseguimos que todas a equipas - e estamos a falar em 17 países, 3 continentes, 43 equipas - conseguissem usufruir do que é Santa Cruz e viver de facto a localidade e interagir com as pessoas.
Esta competição trouxe até Santa Cruz tripulações de 17 países diferentes. De que forma é que este tipo de eventos tem impacto no Concelho?
[…] O objetivo é que haja uma mais-valia e que todos ganhem um pouco com o nosso trabalho. É importante para nós que a sociedade local e o tecido económico percebam a mais-valia que têm ao apoiar o Aeroclube e o Aeroclube também retribuir o mais possível. […] Acima de tudo, nós damos sem querer nada em troca. Isso é algo, infelizmente, não muito habitual na sociedade de hoje em dia, mas é algo que queremos impulsionar e queremos demonstrar que é possível fazer este tipo de eventos numa perspetiva de dar. E provar que uma instituição de utilidade pública, como o Aeroclube de Torres Vedras, consegue ser uma mais-valia para a região.
No futuro, como é que vê o Aeroclube de Torres Vedras?
No nosso futuro nós entendemos que devemos ter um Aeroclube de portas abertas, que se baseie, acima de tudo, na ciência e divulgação de ciência. Claro que tem que dar a continuidade à escola de voo e não deixar de ser uma associação que tem atividades ao nível do desporto e atividades associativas.
Gostaria de acrescentar mais alguma coisa à nossa conversa?
Acima de tudo, gratidão. Gratidão pelo Aeroclube de Torres Vedras. Se não fosse o Aeroclube de Torres Vedras não conseguia ter atingido ser piloto na TAP.
O Aeroclube de Torres Vedras - e é um bocado o trabalho que pretendo também efetuar- deu provas de que é possível uma pessoa normal, sem ter grandes recursos financeiros, se associar ou interagir com uma instituição de utilidade pública e fazer a sua carreia aeronáutica. […]
Onde: Aeródromo Municipal de Santa Cruz
Quando: 19 de setembro de 2019
Filipa Sérgio