Lúcia David
17.06.2021
“A matéria prima é e será sempre o livro, o papel e a cola, agora numa direção mais de narrativa de volumes e menos de narrativa escrita.” Lúcia David nasceu em Anadia, em 1966. Depois de ter trabalhado em moda e design gráfico partiu para Londres, onde completou a licenciatura e o mestrado. Em 2005, a Paços — Galeria Municipal de Torres Vedras acolheu a exposição The Library. Revisitamos a mostra nesta conversa com a artista, que se tem dedicado “às transformações do planeta no seu todo, dos ecossistemas e das populações.”
Depois da formação em design de moda e da experiência em design gráfico, rumou para Londres em 1997, onde se licenciou em Escultura em Metais e fez um mestrado em BookArts. Na altura era um curso pouco explorado e quase desconhecido em Portugal. Pode partilhar como foi a descoberta desse novo caminho?
Fui para Londres em 1997 para anular a experiência negativa de um ano nas Belas [Artes] do Porto, onde o ensino académico clássico baseado no desenho de figura humana se sobrepunha totalmente a qualquer tentativa de descoberta de creative inner voice ou qualquer exploração conceptual de produção de obra. Assim propus-me repensar a arte através da experiência de mudar tudo - espaço físico e social, base de sustento e pensamento artístico - pelo mergulho na língua, mundo académico e vida e cultura inglesas. Foi a melhor e mais libertadora experiência artística até ao presente, de quase 7 anos a viver, respirar, pensar e sonhar arte noutra língua e com completamente novos pressupostos.
Em 2005 tivemos o privilégio de acolher na Paços — Galeria Municipal de Torres Vedras a exposição The Library, que nos “abriu os olhos” ao universo de Book Arts (livros de artista) e em que cada peça era acompanhada por um pequeno conto da sua autoria. Como foi o processo desta exposição?
A experiência de trabalhar com a Paços — Galeria Municipal de Torres Vedras foi absolutamente inspiradora e um grande privilégio. O meu trabalho (porque frágil e em papel) pertencia a uma categoria de obras muito pouco reconhecidas em Portugal com quase nenhuns colecionadores interessados. Trabalhar em “livro de artista” era absolutamente novo e, porque “pensado e falado” em inglês, relativamente inacessível ao público. Mas a exposição da Library foi o marco na minha experiência como artista, com uma grande recetividade por parte do público e onde a galeria que me representa até hoje – Galeria Trema de Lisboa – descobriu o meu trabalho.
Sacrament foi a peça que deixou para integrar a nossa coleção. Gostávamos que nos falasse um pouco sobre a mesma.
A peça Sacrament integra a série Condensed Books. Um conjunto de book objects (como todo o meu trabalho, porque não faço edição) que parte da descoberta, num alfarrabista em Londres, de um sem-número de livros da Riders Digest de capa dura, contendo obras literárias de ficção, ilustradas e condensadas para redução do tempo de leitura sem alterar a plot da história, algo muito popular nos anos 50. Desmantelei os livros e construí peças usando como inspiração textos meus originais (snapshots) que comecei a escrever como materialização dos pensamentos e observações sobre a justaposição das duas culturas, a portuguesa e língua mãe, e a inglesa e língua adquirida. Sacrament é um evento imaginário (um casamento) que se posiciona entre as duas dimensões da vida: a real em Londres e as memórias culturais da vida em Portugal.
Os livros, mas mais que os livros, o papel enquanto matéria, as linhas, a cola, as histórias, a reflexão sobre questões sociais, políticas e filosóficas, e a sua paciência delicada e rigor continuam a fazer parte do seu processo de trabalho? Pode partilhar connosco o que anda a produzir nos últimos tempos?
Desde 2014 que dedico a minha atenção politica e filosófica às transformações do planeta no seu todo, dos ecossistemas e das populações. Clima, economia e profunda metamorfose da western civilization na sua perspetiva de projeção para o outer space e para o “transumanismo”. Tenho desenvolvido centenas de peças que representam visualmente as minhas inquietações e rejeições viscerais das novas tecnologias tal como geoengenharia, inteligência artificial, telemedicina e, finalmente, guerra híbrida cibernética e já fora do controlo humano numa era pós-COVID, onde tudo se reduz à incerteza absoluta.
A matéria prima é e será sempre o livro, o papel e a cola, agora numa direção mais de narrativa de volumes e menos de narrativa escrita. O método e o rigor acompanham-me sempre numa frenética produção minuciosa e quase obsessiva compulsiva.