Octávio Neves
01.01.2012
Octávio Neves, “torriense de gema” como ele próprio se afirma, é um dos poucos coleccionadores de brinquedos do país. Depois de décadas a reunir este tipo de objectos avançou com uma proposta ao Município no sentido do seu espólio ser organizado e exposto, o que deu origem à recente mostra de brinquedos que esteve patente em vários locais públicos de Torres Vedras. À [Torres Vedras] Octávio Neves abordou a construção da sua colecção de brinquedos, a temática do brinquedo em geral, o seu percurso de vida pessoal e também a sua visão de Torres Vedras como cidadão…
Como despertou em si o interesse para a temática do brinquedo?
Comecei a colecção muito cedo, não com o espírito de construir uma colecção logo de início, naturalmente. É a partir dos meus 12 anos que começo realmente a juntar as coisas de uma forma mais objectiva, sendo que os brinquedos que tinha na altura eram aqueles que tinham resistido desde os meus 4/5 anos. A maior parte dos brinquedos recebia-os no Natal, que era sempre muito vivido. Punha-se a meia na chaminé e o presente no sapato, lembro-me daquela ânsia no dia 24 à meia-noite, esperando-se que chegasse a hora para se ter os presentes. É por volta do final da minha infância que começo a ligar a comboios, e a partir daí foi ir acumulando brinquedos. A ideia de constituir um núcleo que viesse a ser a base de uma colecção aparece mais tarde, quando andei na marinha mercante. Nas viagens essa motivação foi crescendo, até que quando sai dessa vida a quantidade de brinquedos já começava a ser razoável, e surge o embrião da possibilidade de poder mostrá-los às pessoas. Isso também porque os brinquedos funcionam para mim um pouco como uma catarse. Se há qualquer coisa que me promova uma indisposição basta começar a pensar em brinquedos que isso passa. Depois, por outro lado, a minha mulher que é formada em História, também se começou a interessar pela forma como eu contava a história a partir do brinquedo, e isso levou-me posteriormente a avançar com a proposta ao Município de se poder contar um pouco da História da Humanidade também por meio do brinquedo. Eu entendo o brinquedo um pouco como uma fábrica de sonhos. Repare que um copo pode ser uma nave espacial, ou outra coisa que se queira… Visitei museus de brinquedos pelos sítios onde andei e reparava que o semblante das pessoas quando saem de um desses museus é sempre a sorrir. As lembranças da infância e da juventude provocam um bem-estar que é uma das coisas que mais falta faz hoje em dia. E no meio da crise em que estamos ainda mais relevância tem….
Depois do período em que esteve no mar, como prosseguiu a sua colecção?
Prossegui em Portugal comprando em feiras, em lojas, e mais recentemente por meio da Internet. Também às vezes comprando lotes de coleccionadores que faleciam e que os herdeiros acabavam por vender. Um aspecto importante relativamente a qualquer colecção e muito mais a este tipo de colecção é que se não for entregue a uma instituição pública, desfaz-se. E as peças com mais qualidade são muito procuradas, por estrangeiros, sobretudo, que são aqueles que têm mais poder de compra.
Há muita gente a coleccionar brinquedos em Portugal e no estrangeiro?
Em Portugal há umas quantas pessoas, quase que nos conhecemos todos, porque quando se visita certos locais onde se adquire este tipo de objectos encontramo-nos. A maior colecção que existe é a que está no museu de Sintra, há mais de 20 anos, e que tem como base a colecção do engenheiro Arguais Moreira, que tem um espólio com mais de 40 mil brinquedos. O Carlos Anjos tem uma colecção de brinquedos portugueses também muito boa, em Ponte de Lima, e depois há outros coleccionadores que também se dedicam a áreas específicas.
Agora, no estrangeiro, há muita gente a coleccionar. E o brinquedo tem uma característica engraçada, é que nunca desvaloriza. Pode-se dizer que é um investimento seguro, apesar de nunca o ter encarado como um investimento porque para isso teria de ser mais selectivo.
Que temáticas abrange a sua colecção?
A minha colecção é generalista. Eu nunca me dediquei objectivamente a nenhuma área em particular, embora a colecção esteja centrada na folha que é o tipo de brinquedo que eu gosto mais, até talvez por ser o brinquedo que era mais vulgar nos meus tempos de criança. Mas como disse, a colecção é generalista e permite qualquer tipo de abordagem porque abarca todo o universo do brinquedo.
Qual é a sua opinião relativamente aos brinquedos de antigamente e aos actuais?
Hoje em dia está-se muito a cair no brinquedo virtual, nas consolas, nos jogos de computador, e que têm o seu papel, mas que é crítico para a empresa do brinquedo físico. Mais de 80% do brinquedo mundial é fabricado na China, tudo muito na base de figuras que geram alguma violência, e há que contrariar isso. Eu não vejo outra possibilidade que não seja utilizando o tipo de brinquedo mais tradicional, criando-se sinergias para que pelo menos se abra os horizontes aos miúdos para outras formas de brinquedo. Por outro lado, o brinquedo virtual gera um pouco de isolamento, já para não entrar numa ideia que é um pouco polémica de que é um elemento gerador de violência. Há uma e outra parte, mas continuo a dizer que os que defendem que não gera violência são patrocinados pelas companhias de vídeo-jogos (risos) …
Considera então que o brinquedo é importante para o correcto desenvolvimento da criança?
Eu penso que é fundamental…
É da opinião que a sociedade actual não está a favorecer o correcto desenvolvimento da criança? Há quem considere isso porque, por exemplo, os desenhos animados são cada vez mais agressivos, as crianças estão muito isoladas em casa ou são “empacotadas” nas escolas onde estão o dia todo e são sobrecarregadas de actividades extra-curriculares…
O aspecto sociológico de que fala acho efectivamente muitíssimo importante, e se a minha colecção permitisse gerar algum movimento no sentido de um crescimento mais saudável das crianças, o objectivo que eu tenho relativamente a ela seria largamente alcançado. Actualmente tudo anda em volta do brinquedo virtual, e esquece-se o jogo educativo, como o lego. Esse tipo de brinquedo tem, por exemplo, uma influência muito grande na pessoa ao nível da precisão, do método, da paciência, desenvolve uma série de características que se devem potenciar.
Há autores que defendem que o Homem moderno escondeu a criança que tem dentro de si. Pablo Neruda, por exemplo, diz que o Homem que não brinca perdeu para sempre o menino que vivia nele e que lhe fará muita falta. Cristo, por outro lado, diz até que quem não for como criança não entrará no Reino dos Céus. Qual é a sua opinião sobre esta temática?
Fez-me agora lembrar uma pessoa que teve uma importância grande na minha formação e no gosto pelo brinquedo que foi o Padre Joaquim Maria de Sousa, meu professor de Religião e Moral no liceu. Era uma pessoa que fomentava muito os jogos tradicionais, às vezes íamos ao castelo jogar à malha ou ao jogo do galo ou ao “ula-up”. Analisando agora a posteriori parece-me que foi uma influência positiva que eu tive. Às vezes são pequenas coisas que têm uma influência grande e positiva na vida das pessoas…
Uma amiga que teve uma loja de brinquedos disse-me uma vez que os pais compravam-lhe artigos para os filhos para posteriormente serem eles a usufruírem…
Isso é um facto porque eu também tenho um filho que está agora na universidade e lembro-me que muitas vezes comprava-lhe os que ele gostava mas muitas vezes também era os que eu gostava…
Verifica-se hoje que o próprio brinquedo não é valorizado pelas crianças como antigamente, uma criança depois de receber um brinquedo muitas vezes, pouco depois, despreza-o ou destrói-o…
Concordo com essa análise. Parece-me que no tempo que estamos a passar isso vai alterar-se um pouco, não digo que as coisas voltem a ser como nos anos 60, quando o brinquedo se começa a generalizar em Portugal, em que os que tínhamos muitas vezes eram artesanais e até feitos pelos próprios pais. Havia nessa altura muito o hábito de recuperar as coisas porque os tempos eram difíceis. Aliás, foi quando começou a guerra colonial, o que teve também uma influência muito grande no tipo de brinquedo que era posto à venda. De resto, as guerras mundiais tiveram uma influência muito grande na indústria do brinquedo, tanto a primeira como a segunda, mas sobretudo a segunda, até porque é a seguir à segunda guerra mundial que a indústria do brinquedo se desenvolve muitíssimo devido ao aparecimento do brinquedo com motor eléctrico no Japão, já que antes era utilizado a corda, dominando até aí o brinquedo alemão. E muitos dos brinquedos dessa época, nomeadamente os americanos, eram até feitos a partir de latas de óleo. Devo referir a este propósito que a vertente do restauro é um interesse que tenho desde muito miúdo porque se o meu pai comprava algum brinquedo e eu o estragava era a minha mãe que o arranjava. Via-a a arranjar o brinquedo e a tornar um brinquedo velho num novo. Muitas das coisas que adquiri na Internet estavam avariadas e acabei por comprá-las assim porque eram substancialmente mais baratas e não há muita gente dedicada ao arranjo de brinquedos.
Desde que começou a sua colecção tem notado uma evolução tecnológica muito grande…
Sim, até ao início dos anos 90, depois há uma quebra muito grande na evolução do brinquedo físico porque apareceram as consolas e os jogos de computador…
Está satisfeito com a exposição promovida pelo Município que constituiu a primeira abordagem à sua colecção de brinquedos?
Sim, e o próprio programa de actividades paralelas à exposição foi genial. Este tipo de actividades em termos culturais é extraordinariamente importante e não vejo o mesmo paralelo em outros lados, acho que é de dar valor a quem se interessa por este tipo de coisas. É uma pena que de um modo geral as pessoas estejam sempre muito mais predispostas a dizer mal do que a dizer bem. Eu aceito que as pessoas queiram sempre mais, mas é preciso que haja possibilidade para isso. Quem já passou por cargos públicos sabe o quão difícil é obter resultados e a satisfação de todos. Agora, a tentativa de fazer melhor deve realmente estar sempre em mente. Eu penso ser um indivíduo essencialmente construtivo. Interessa-me sobretudo os aspectos construtivos e penso que é a esses que se deve dar relevância.
Pretende dar continuidade à sua colecção no futuro?
Nesta fase estou um pouco à espera do que o Município decida fazer relativamente à colecção, mas provavelmente deixar de coleccionar não o farei.
Fale um pouco do seu percurso de vida pessoal…
Sou torriense “de gema”, nascido em casa como era usual na época, e estudei aqui até ao 7.º ano. Posteriormente fui estudar engenharia mecânica para o Técnico, ainda antes do 25 de Abril. Andei lá várias vezes a fugir à frente dos cães, apanhei toda essa época, até ter concluído que dificilmente conseguiria terminar o curso. E é nessa altura que decidi ir para a marinha mercante, tirei um curso de ciências náuticas até por influência de um tio meu, e embarquei como piloto em 75. Andei 6 anos em viagem. Quando saí da marinha mercante dediquei-me à contabilidade e finanças e trabalhei então no mundo das empresas, vivendo sempre em Torres. Fui director financeiro de uma empresa durante 16 anos e quando saí de lá, há dois anos e meio, comecei a equacionar dedicar-me ao projecto da colecção de brinquedos, porque fazer uma coisa destas leva realmente muito tempo e se não fosse agora já não teria tempo para organizar a colecção.
Como tem visto o crescimento de Torres Vedras?
Voltando aos anos 60, lembro-me que naquela altura o que se dizia é que as duas maiores vilas do país eram Torres Vedras e o Barreiro. Torres era, portanto, considerada uma vila muito acima da média no país. Olhando para Torres Vedras hoje tem de se reconhecer que houve realmente uma evolução muito grande, a qualidade de vida nela é muitíssimo superior, não há qualquer dúvida, é uma pequena boa cidade, e quem viaja pelo país e pelo mundo penso que não tem dúvida disso. É um sítio agradável para se viver, em termos de segurança é muito bom, o que é relevante nos tempos que correm, e em termos de equipamentos há tudo. É um local aprazível, digamos assim…
Preferia ter sido criança actualmente ou em outra altura da História?
Eu digo-lhe sem qualquer espécie de dúvida que eu nasci na altura certa. Porque é uma glória para as pessoas da minha geração terem vivido os anos 60 – com o Maio de 68, a chegada à Lua, o festival de Woodstock - que foi uma década de ouro, a explosão de alegria que foi o 25 de Abril com toda a carga que teve gerar um futuro muito melhor… Penso que vivi numa época engraçada e no brinquedo também, porque francamente digo-lhe que acho muito mais piada aos brinquedos dos anos 60 do que aos de actualmente, apesar de também jogar computador, gosto inclusivamente muito de jogos de estratégia, e acho que uma coisa não colide com a outra. O problema é a injecção constante que se faz em termos de publicidade para promover o brinquedo virtual, e isso tem de ser temperado de alguma maneira…
Entrevista extraída da edição nº6 (janeiro/fevereiro de 2012) da revista municipal [Torres Vedras]