Pedro Lamy
02.01.2018
Desde cedo lhe ganhou o gosto e a verdade é que soma já uma vida “sobre rodas”.
Bastante competitivo, mas de espírito sereno, a nossa conversa faz-se com um grande piloto.
Passou pelas motas, karts e todas as Fórmulas, incluindo a Fórmula 1, onde chegou com 21 anos. Sagrou-se, no passado mês de novembro, campeão do mundo de resistência 2017, ao vencer as 6 Horas do Bahrain.
Nesta edição, Pedro Lamy é o nosso campeão convidado e vem demonstrar que está aí “para as curvas”.
Aos 5 anos ergueste o 1.º troféu de campeão nacional de mini-motociclismo.
Como nasceu este “bichinho” pelas corridas?
Eu comecei pelas motas, no desporto motorizado, porque o meu pai me comprou uma mota muito pequenina. O meu avô tinha visto um anúncio no jornal, o meu pai achou piada e comprou a mota. Na altura já devia andar de bicicleta mais ou menos, experimentei a mota e no primeiro dia tive logo um acidente. Caí, assustei-me e tive uma série de dias ou semanas sem querer andar de mota, mas depois o meu pai lá me convenceu e comecei a andar de mota, a treinar e a brincar, porque eu cresci numa aldeia, na Aldeia Galega da Merceana, e era fácil andar de mota, andar no campo, e eu tinha bastante liberdade para andar nos terrenos e nos campos ali à volta da aldeia.
Depois comecei a competir no mini-moto cross. Obviamente que eu não fazia ideia o quer era isso, mas o meu pai é que me levava para as competições de mini-moto cross e mini-velocidade e eu lá fui vencendo uma série de corridas e campeonatos.
Venci vários campeonatos até que mudei para os karts. Mudei para os karts porque, na altura, o meu mecânico teve um acidente e ficou paralítico. Eu ia mudar de categoria e lá em casa acharam melhor eu mudar para as quatro rodas, para os karts. Bem, lá em casa achavam que seria melhor parar, mas o meu pai lá me convenceu a mudar para os karts.
A tua mãe não achava muita piada?
Pois, a minha mãe não devia achar muita piada. Estive cerca de dois anos parado, entre as motas e os karts, mas o meu pai comprou-me um kart e comecei a correr aos 13 anos. Comecei a treinar na Ota, na base aérea, para controlar o kart e era um bom treino. Depois comecei a correr, andei logo na primeira corrida que fiz, fui correndo, fui evoluindo e fui campeão nacional de karts. Passei para a Fórmula Ford, fui campeão de também de Fórmula Ford e nessa altura comecei a apaixonar-me mais pelos carros.
Quando é que te apercebeste que o automobilismo marcaria a tua vida? Ou não houve um momento e foi, antes, um processo natural?
Eu achava que era impossível ser profissional de automobilismo. Achava que era uma brincadeira, era um desporto e que, mais tarde ou mais cedo, ia acabar. Nem pensava nisso. Ia correndo, corrida a corrida ia dando o meu melhor. Pensava nas próximas corridas e, se possível, correr no próximo ano. E as coisas foram acontecendo naturalmente. Logicamente, o meu pai sempre teve um bom olho para ir escolhendo os melhores karts, os melhores carros na Fórmula Ford, depois as melhores equipas para ir para a Fórmula Opel e fui conseguindo obter vitórias e prolongar a minha carreira. Não sabia que era possível viver do desporto automóvel tanto tempo.
E és uma pessoa muito competitiva ou não te importas de “perder a feijões”?
Eu sou bastante competitivo, mas não tenho mau perder. Não gosto de perder, mas não tenho mau perder. Não fico a tratar mal o vencedor por ter perdido para ele. Mas gosto de vencer. Sou viciado em vencer e, graças a Deus, tenho tido muitas vitórias na minha carreira, o que me tornou um pouco “dependente” de vitórias.
Como já referiste, passaste pelas motas, pelos karts, por várias Fórmulas, até que em 1993 te estreaste na Fórmula 1. O que sentiste quando te apercebeste que ias ser piloto de Fórmula 1?
Eu não acreditava muito que chegasse à Fórmula 1, ou não pensei que fosse tão próximo. Estava na Fórmula 3000 e a andar bem, estava a lutar pelos primeiros lugares, fiquei em segundo lugar a um ponto do primeiro, estava bastante competitivo, mas achava que a Fórmula 1 ainda estava muito longe. De repente surgiu a oportunidade de fazer o primeiro Grande Prémio quando o Zanardi teve o acidente em Spa e precisaram de outro piloto. Tinha a oportunidade de fazer o meu primeiro Grande Prémio, o que foi um susto para mim. No dia seguinte estava a treinar num Fórmula 1, e a experimentar o carro e perceber como seria o próximo Grande Prémio, que foi em Monza.
Que momentos mais te marcaram, positiva e negativamente, na tua carreira no desporto automóvel?
O momento que mais me marcou positivamente foi a chegada à Fórmula 1, que no fundo é a realização de um sonho. Era uma coisa que eu não acreditava muito, mas que aconteceu, devido aos resultados que obtive em todas as outras categorias, aos apoios que tive. Eu gosto mais de olhar para as vitórias e todas as vitórias que tive ao longo da minha carreira foram bons momentos, sobretudo no segundo ano em que corri fora de Portugal e venci o Campeonato Europeu. Ganhei um pouco de confiança e determinação para ir mais longe, até chegar à Fórmula 1. Esses foram dois pontos altos. Um ponto negativo foi, sem dúvida, o meu acidente porque foi um momento em que eu estava a escalar, estava em ascensão, tinha vencido todas as categorias, estava na Fórmula 1 e o próximo passo era entrar numa equipa mais competitiva para, se possível, conseguir bons resultados e vencer corridas na Fórmula 1. Tive o acidente e a confiança das outras equipas para me contratarem diminuiu completamente e tive alguma dificuldade em voltar para a Fórmula 1. Consegui regressar, mas nunca consegui ir para uma equipa competitiva.
Fisicamente, a tua recuperação foi demorada?
Estive quatro meses sem poder andar, portanto todos os músculos foram um “bocado ao ar”. Tive de fazer bastante recuperação física, muita fisioterapia e para regressar à minha melhor forma física foi um bocadinho complicado. Tive o apoio do António Gaspar, que é o fisioterapeuta da nossa Seleção Nacional agora, que era na altura médico do Benfica, onde fiz a minha recuperação toda. Acabou por ser rápido porque passado meio ano estava na Fórmula 1.
Sagraste-te recentemente campeão mundial de resistência, na categoria GTE Am, no Bahrain. Foi um título suado, mas este foi o ano!
Sim, foi um campeonato que correu muito bem. Este ano vencemos quatro provas e o campeonato, o que foi muito gratificante para nós, para o Paul Dalla Lana, para o Mathias Lauda, para mim foi muito bom, como para toda a equipa. Mas foi realmente passado muito tempo. Foram quatro anos que estivemos nesta categoria e, desde o primeiro ano, vencemos muitas corridas, mas por um incidente daqui ou dali nunca conseguimos ser campeões. Tivemos muitas vitórias, mas o resultado mais importante conseguimos este ano e estou muito satisfeito por isso.
Os nossos parabéns por esta vitória!
Obrigado.
Quando estás na grelha de partida, levas toda a equipa contigo no carro, ou nesse momento focas-te apenas naquilo que tens de fazer?
Eu tento focar-me naquilo que tenho de fazer e tenho uma grande ligação à equipa. Nós funcionamos bem em equipa e tentamos, todos juntos, levar o carro para a frente. Mas a concentração tem de ser no carro, tem de ser no que se passa à volta na corrida e tenho de passar todas as informações à equipa para que o resultado final seja o melhor.
O teu nível de concentração tem de ser máximo, tens de ir completamente focado?
Sim, tenho de ir bastante focado naquilo que estou a fazer. Às vezes os pilotos estão muito nervosos antes e depois, eu acho que não adianta muito estar nervoso. O importante é estar concentrado quando a coisa começa e durante toda a corrida para que as coisas corram bem. Se uma pessoa se concentra muito tempo antes, chega o momento que é importante, em que a coisa acontece, e já está cansado. A concentração é fundamental, mas nos momentos certos.
Com tantos títulos que conquistaste e com a experiência que tens, eu deduzo que te continue a ser exigida uma preparação especial antes de uma corrida importante, tanto física como mental, ou estou errada?
É importante, mas ao longo destes anos todos eu tenho conseguido manter a preparação necessária para estar bem dentro do carro. Há pilotos que usam o físico mais do que outros, cansam-se mais dentro do carro do que outros, guiam mais tensos ou menos tensos. Eu até não me canso muito, mas gosto de estar preparado fisicamente. Antigamente eu corria muito, era a preparação que eu achava melhor, para respirar melhor e ter uma aeróbica melhor. Ultimamente evito correr por causa dos meus joelhos que, depois do acidente, noto que estão cada vez mais frágeis. Então tento diversificar um pouco, ando de bicicleta e faço surf, que é o meu desporto preferido e que me dá alguma preparação física e, assim, junto o útil ao agradável.
Na praia de Santa Cruz!
Na praia de Santa Cruz, que é a minha praia.
Pedro, que troféu te deu mais prazer conquistar?
Eu já ganhei vários troféus… [pensativo] Se olharmos para uma corrida em si, Pau [França] na Fórmula 3000 foi uma das corridas que foi muito importante no momento em si, tinha lá muitos portugueses, muitos amigos de Santa Cruz e de Torres Vedras que me acompanharam. Estava muito apoiado e venci a corrida. Foi um momento marcante na minha carreira. Ganhar um Grande Prémio, essa corrida na Fórmula 3000, foi muito bom. Mas eu acho que os campeonatos são mais importantes e o meu primeiro campeonato europeu de Opel-Lotus foi o que transformou mais a minha carreira. Deu-me mais confiança para o futuro. Fórmula 3 também foi importante e, logicamente, o último foi o que me soube melhor porque é o que tenho mais presente [riso]!
E qual foi a tua corrida ou prova mais difícil?
Eu tento esquecer as coisas que não me correm bem e tento passá-las para trás. Houve várias corridas que não me correram bem, com problemas daqui ou dali, com erros de pilotagem, problemas com outros pilotos na pista… mas tento esquecer. Nem penso nisso!
É a memória seletiva. Apagas?
Sim, apago!
Circuito preferido?
Macau. Na primeira vez que lá corri, em 1992 em Fórmula 3, fiquei apaixonado pelo circuito. Realmente é espetacular, é um circuito muito exigente, ao nível de concentração e reflexos, porque é entre muros, aos saltos… Andei bem, fiquei em segundo, mas andava na frente e acho que merecia ganhar, fui um bocado prejudicado por uma série de coisas, mas também não importa. Já passou.
Mas Macau e depois Nürburgring (Alemanha), também é um circuito espetacular com 25 quilómetros. Há montes de circuitos: Spa (Bélgica), Austin (EUA) também é um circuito muito giro… gosto de vários circuitos. Mónaco é especial também porque eu gosto de circuitos citadinos porque dá uma adrenalina totalmente diferente.
Categoria preferida?
Categoria preferida é sempre complicado. Eu acho que a Fórmula 1 é o topo do automobilismo. Não foi onde eu estive mais tempo, nem onde fui mais feliz, mas a Fórmula 1 é a Fórmula 1. Eu gosto muito de Fórmulas e, se olhar para a minha carreira, a Fórmula 3 talvez tenha sido onde eu me diverti mais porque tinha um bom carro, vencia corridas e gostava muito do carro em que corria. Era um Fórmula 1 pequenino, com um chassi de um Fórmula 1, mas com muito menos potência.
Mas a Fórmula 1 é onde qualquer jovem do desporto automóvel deseja chegar.
Já apanhaste grandes sustos?
Já, já apanhei grandes sustos em corridas, mas também apanho sustos na estrada. No dia-a-dia quando andamos na estrada e nos distraímos com qualquer coisa também me assusto. Nas corridas as coisas são mais previsíveis, estamos mais concentrados e há menos sustos. Ainda assim quando chove muito, em retas longas, quando fazes aquaplaning é muito difícil porque tentamos ir a fundo e se perdemos o carro é muito complicado, mesmo com pneus de chuva. Por exemplo, em Nürburgring quando começa a chover torrencialmente e nós estamos de slicks*, a meio do circuito,a 10 quilómetros das boxes para mudar de pneus é complicadíssimo [riso], mas momentos de susto de morte não tenho tido muitos!
És um piloto supersticioso?
Sou bastante. Sempre fui e gostava de não ser. Não me agrada nada.
Uma superstição que não falhes?
Tenho muitas. Eu antigamente tinha sempre a superstição de entrar nos Fórmulas com o pé direito e sair com o pé direito para que as coisas corressem bem. Eu acho que todos os desportistas são supersticiosos e eu também sou.
Arrependes-te de ter sacrificado alguma coisa na tua vida pela tua carreira no desporto automóvel?
Não, não me arrependo [pensativo]. Na juventude acho que perdi um pouco. Naqueles anos em que os jovens saem mais com os amigos e estão mais tempo com os amigos perdi uma série de coisas porque aos 18 anos fui morar para Inglaterra, foi o primeiro ano que fui correr para fora de Portugal e, a partir daí, limitava-me às férias. Perdi algumas coisas que os meus outros amigos viveram enquanto estive fora, mas também estava a fazer aquilo que mais gostava, a competir, e conheci um mundo diferente, não tão próximo dos amigos, mas fiz novos amigos, conheci novas pessoas. Foi uma opção, mas logicamente perdi algumas coisas.
A tua estabilidade familiar reflete-se na tua performance?
Sim, é fundamental ter uma família estável. Tanto a Carla, a minha mulher, como os meus filhos apoiam-me muito e isso é muito gratificante para poder dar o meu melhor sempre que estou no carro. Tem sido bom.
Quando não estás a competir como é gostas de ocupar o teu tempo-livre?
Se não for fazer surf, gosto de viajar. Não, em primeiro está viajar e principalmente nas férias dos meus filhos. Tentamos conciliar e, sempre que possível, viajamos. A minha preferência vai para conhecer novos países e abrir um bocado o espírito. (…) Cá em Portugal, quando tenho tempo, gosto de fazer surf.
Então se fores viajar para um destino de surf é ouro sobre azul?
Sim, é juntar o útil ao agradável.
Se não fosses piloto que profissão é que achas que terias? Ou o que é que gostarias de fazer?
Na escola estava mais virado para a mecânica, eventualmente ser engenheiro mecânico, não sei se conseguiria ou não tirar o curso de engenharia mecânica. Mas se eu pudesse escolher, escolheria ser surfista profissional. Deve ser a melhor vida e é um dos desportos que eu gosto mais. Mas eu acho que não se pode escolher, esses desportos não podem ser escolhidos. É difícil ser profissional no automobilismo e no surf também é difícil.
Achas que é muito “para aquilo que se nasce” ou achas que se pode treinar?
Acho que é mais para aquilo que somos treinados, no fundo. Há atletas a quem custa mais um bocado a ganhar o ritmo em certos desportos e acabam por ser melhores do que outros, que eram muito bons no início, mas não conseguem atingir fins tão competitivos. Por isso, eu acho que se nos dedicarmos e tivermos as armas todas para melhorar no desporto, é possível. Temos de acreditar, mas também ser um pouco “empurrados” pelos pais, porque os pais é que fazem com que os filhos comecem a praticar certos desportos muito cedo e isso tem toda a influência no futuro.
Quem é a tua referência no surf?
O Kelly Slater há de ser sempre a referência que há de ficar e fica (…). A nível nacional, Frederico Morais é a nossa grande esperança. Quer dizer, o Frederico já lá está [Circuito Mundial de Surf], a esperança é o Vasco Ribeiro que ainda não está lá. O Frederico Morais está ali para ser o melhor rookie e, quem sabe, talvez o primeiro português campeão do mundo de surf. É difícil, mas é possível. Mas, atualmente, o surfista que eu mais gosto de ver é o John John Florence, é o mais completo e o campeão atual.
Agrada-te, como surfista de Santa Cruz, assistir à realização de campeonatos de surf já organizados pela World Surf League, como o QS 3000? Julgas que é uma boa forma de promover o surf, o nosso território e as boas ondas de Santa Cruz?
Acho que é ótimo, temos boas ondas em Santa Cruz e o campeonato correu muito bem. É bom para o concelho, para a zona Oeste e para Santa Cruz especialmente. Foi espetacular, o campeonato correu bem e espero que continue com 3 mil ou mais pontos até. Estamos numa zona privilegiada, entre Peniche e Ericeira, e às vezes as melhores ondas estão mesmo em Santa Cruz!
40 anos de carreira pode parecer uma expressão forte, mas é uma grande verdade. O que é que a idade te trouxe de bom?
De bom? Trouxe-me muitos bons momentos em termos profissionais, venci muitas corridas, tenho uma família que adoro e que me tem feito feliz… e o que é que eu tenho mais? [pensativo] É difícil de dizer…
Tranquilidade?
Tranquilidade! Acho que estou tranquilo, olho para trás e acho que tenho uma carreira que correu bem, tive muitas vitórias, tive momentos muito felizes. Considero-me uma pessoa feliz e espero que assim continue.
*Pneus lisos para utilização em piso seco