Um brinde entre Alenquer e Torres Vedras
02.01.2018
Desde longa data, o vinho une os homens, assim como os povos. Uma verdade a propósito da recente eleição da “Cidade Europeia do Vinho em 2018” atribuída a Alenquer e a Torres Vedras. Uma distinção apenas para rainhas, fazendo lembrar que, desde o século XV, ambas integravam a casa das rainhas, unidas pelo mesmo senhorio, desde que a sua primeira Senhora, D. Beatriz de Gusmão, recebeu de D. Afonso III, em data anterior a 28 de junho de 1277, os senhorios de Alenquer, Torres Vedras e Torres Novas.
Este é mais um resultado dos traços de uma união que não é nova, recuando pelo menos à baixa Idade Média. Já então o “Foral da portagem de Lisboa”, de cerca de 1377, atestava a exportação do vinho de Alenquer para Lisboa, referindo-se-lhe em conjunto com os moradores de Ribatejo, Vila Franca e outros lugares fora do termo de Lisboa. Por este se obrigavam a trazer os tonéis da capital cheios de vinho para os exportar ou vender em Lisboa, mediante o pagamento de penhores ou da décima parte. Também pelo mesmo Foral, ficamos a saber que, de Torres Vedras chegava vinho «em bestas» à capital, como também lá chegava vinho, por mar, de Atouguia e Lourinhã, uma parte do qual podia ser originário de Torres Vedras e transportado pelos azeméis até esses portos próximos.
Todavia, já o foral doado pela infante D. Sancha (filha de D. Sancho) a Alenquer, em 1212, assim como o foral doado a Torres Vedras por D. Afonso III, em 1250, referem a importação de vinho durante o período do relego (tempo de reserva de que o rei dispunha para a primazia na venda do seu vinho, fixado entre 1 de janeiro e 31 de março), mediante o pagamento de um almude por carga (14 a 18 litros), assim como a isenção de tributos sobre o vinho trazido de Santarém e de outros lugares, desde que para consumo doméstico, testemunhando a ocorrência de alguns momentos de carência para satisfazer as necessidades de consumo.
A sua produção excedentária nos territórios de Alenquer e Torres Vedras manteve-se no século XVI, tendo como destino o mercado lisboeta e a exportação, descendo o vinho pelo rio Tejo em barcas. Por cada barca que carregasse vinho, ancorada no porto da Marinha, pertença da rainha, pagava o seu proprietário um almude de “vinho vermelho” (vinho tinto). Vinho de qualidade, que alcançara fama por parte de comerciantes estrangeiros, que o buscavam nos portos fluviais da vila, desde o tempo de D. Filipa de Lencastre. Ainda com um significado pouco expressivo na balança de exportações da capital, o vinho integrava, porém, o rol de produtos carregados nos barcos para a exportação.
As castas torrienses mais correntes para os vinhos tintos eram a labrusca, a castelã e a azal. Para a produção de vinhos brancos usava-se, sobretudo, a terrantês. Da mourisca, ignorando-se se tinta ou branca, atesta-se igualmente a sua presença. Os mesmos vinhos tintos certamente produzidos por Alenquer, silenciados na documentação medieva, sob o epíteto de “vinho encarnado”.
Enfim, também pelo vinho, passavam como passam traços de uma relação identitária das duas vilas de então, eminentemente rurais, dedicadas grandemente à exploração vinícola. Hoje, aliam à Memória e ao saber ancestral a mais moderna tecnologia, para que os seus vinhos voltem a conquistar as mesas dos povos europeus.
Carlos Guardado da Silva